[Não conhece-te a ti mesmo]

Por Heloísa Sousa
16/06/2017

Escrevo sobre uma exposição/instalação fotográfica realizada após uma série de intervenções urbanas proposta pelx multiartista Natã Ferreira em seu “Projeto IDentidade” financiado pelo Fundo de Incentivo à Cultura de Natal 2015. A exposição esteve aberta ao público durante o mês de maio, na Galeria Newton Navarro da Fundação Cultural Capitania das Artes em Natal/RN.

Pelas ruas da cidade de Natal, Natã Ferreira e mais dois artistas convidados, Ivan de Melo e Maíra Sara, transitaram envoltos em uma vestimenta preta ou branca que cobrem inteiramente os corpos, não deixando nenhum traço de pele à mostra ou partes do rosto que identifiquem xs performadorxs. Esse deslocamento foi registrado, por Roger Tavares em fotografias que apresentaram algumas (inter)ações desses corpos pelas ruas e composições com o espaço criando imagens que permitem provocações e reflexões políticas sobre as relações em sociedade.

Natã Ferreira é um dos jovens artistas visuais da cidade com trajetória invertida, tendo saído de São Paulo para vir estudar e trabalhar em Natal. Apenas isso, me parece já trazer pistas de um corpo inquieto que busca os espaços desconfortáveis e instaura sua criação potente, instigante e de ruptura, mesmo se deparando com a falta de recursos materiais e de incentivo às práticas artísticas contemporâneas, como é caso da realidade natalense. Talvez esse parágrafo seja um romantismo na minha parte, mas eu [natalense] escolho acreditar nisso. A potencialidade da arte de Natã está em permitir-se ser multiartista e criar visualidades que podem ser atravessadas por aqueles que compartilham de suas obras, ou ainda, criar uma visualidade que atravessa cotidianos e cruza com os olhares de inúmeros residentes desta cidade que tanto ignoram as práticas artísticas, a vida cultural e aqueles que insistem em viver deste modo des[viado]. Neste sentido, lembro do grande artista Flávio de Carvalho, um dos primeiros a propor práticas performativas como pesquisa e atravessamento nas ruas de São Paulo, na década de 1950; e que se tornou referência para as pesquisas e experimentações que o sucederam na arte da performance. Acrescento ainda, a percepção que Natã tem sobre a contemporaneidade, incluindo em suas obras não apenas o hibridismo e a convergência de artistas diversos em um mesmo projeto, mas também trazendo para as suas experimentações os dispositivos tecnológicos e seus hipertextos que já se tornaram aplicativos inerentes a nossa condição existencial.

Espaço, gênero, identidade e fluxo são palavras-chaves para acessar suas obras. Destaco aqui, o reconhecimento das aparências corporais como lugar de discussão e de proposição de novos agenciamentos para o corpo; Natã traz nos corpos vestidos [/despidos] outras formas de apresentação do self e de interação com o entorno a partir de uma concepção visual que se desenvolve no próprio corpo e que sai rasgando a paisagem urbana. E foi durante 31 dias que essas silhuetas de corporeidades criadas por Natã transitaram por Natal e interagiram com espaços turísticos, escolares, comerciais, institucionais.

Esta experiência gerou registros fotográficos, pensamentos e resíduos materiais que compõem a exposição que visitei. Preciso dizer que já pensava em visitar a exposição, mas o meu deslocamento até lá só se deu após a leitura da entrevista [incrível] concedida por Natã ao projeto “Nós: Mapeamento e Articulação de Redes” coordenado pelas artistas Lara Ovídio e Sofia Bauchwitz e publicado no site Apartamento 702. Na entrevista temos um panorama das criações de Natã e suas principais referências e intencionalidades, afetadas por pesquisas filosóficas e sociológicas que trazem a arte para um campo de discussão sobre o próprio ser; e a performance como uma ação que caracteriza um modo de [perceber a] vida. Ler a entrevista me fez querer encontrar esse artista.

Ao adentrar a galeria nos deparamos com pensamentos do escritor português Valter Hugo Mãe, que eu até então desconhecia, mas que agora tenho me debruçado sobre suas palavras por perceber o quanto aquilo também diz sobre o que me inquieta no momento: a necessidade de nos voltarmos para a nossa própria existência e nos permitir desconectar de materialidades excessivas ou opressões transcendentais. É que o humano esqueceu que é humano, que convive com o outro [que é a diferença, por excelência] e que viver é estar aberto ao mundo e às transformações que ele suscita. A nossa complexidade reside na nossa simplicidade, mas a “centelha divina” que em nós habita tocou no “ego” e nos fez acreditar que precisamos de “mais” e que o universo clama pelas nossas [cri]ações. “O homem sabe, mas não aprendeu” (Valter Hugo Mãe).

E desse pensamento que engloba a existência em coletivo, somos levados a pensar o contexto. Com escritos borrados nas paredes, Natã nos traz em palavras escritas a punho uma abordagem crítica sobre o cenário cultural natalense, a ausência de valorização dos profissionais artistas desta cidade e de investimentos do poder público que permitam que as comunidades acessem e contemplem sua própria história. Estas simples palavras ganham imensa força quando lidas nas paredes da galeria [isolada] de uma instituição que deveria se responsabilizar e organizar os investimentos culturais municipais. Quase ironicamente e previsivelmente, foi esta mesma instituição que aprovou a obra artística em questão no FIC Natal 2015, mas cujo atraso [absurdo e mal justificado] dos pagamentos impediu, por meses [quase um ano inteiro], que os projetos se iniciassem. Meu maior incômodo ao iniciar minha experiência nesta exposição, foi pensar que, pelo isolamento desta galeria e falta de divulgação e investimento nos espaços culturais da cidade que tornem nossa produção artística acessível amplamente, estas palavras não seriam lidas por pessoas suficientes.

Em seguida, fotografias expostas no chão [outro desvio / podiam ser pisadas?]. Os retratos traziam os registros dos 31 dias de performance com os corpos vestidos de silhuetas brancas/pretas em ações, posições e interações pelas ruas de Natal. Mesmo sendo estáticas, a potencialidade discursiva das imagens nos traziam sensação de movimento. Talvez, o fato de estar imersa nessas mesmas ruas, vivendo esta mesma política e cruzando com essa gente há 25 anos me traga a sensação de movimento. Pelos retratos, eu podia acompanhar as ações performativas e as intencionalidades dos artistas ao se posicionarem de determinado modo. O processo de criação, as referências, as discussões também estavam expostas, não apenas o produto artístico [ele existe?].

Próximo às fotografias, ainda no centro do espaço da galeria, víamos rastros materiais da performance: vestimentas, cordas, panos, sacos com tralhas, papeis. A exposição se compreendia entre palavras, imagens, matérias-vestígios. Mas, todos dessacralizados, profanados, sujos, desviados, borrados, retirados das poses comuns e intocáveis de exposições tradicionais. Tudo era visualidade penetrável, diferente dos retratos emoldurados e previsíveis. Mas, tudo isso não era a obra em si, era apenas um dispositivo de sensações, rastros de memórias que nos ajudavam a reconstruir 31 dias de pesquisa e experimentação performativa do artista.

Visitei a exposição duas vezes, no mesmo dia. Entrei e sai. Entrei e sai de novo. E depois percebi que a potência das figuras em silhueta não estava em negar a identidade, mas em afirmá-la. Em afirmar a nossa incapacidade de afirmar nossa identidade, simplesmente porque ela é líquida. As figuras mostravam que sua identidade era não ter identidade fixa e reconhecível, que sua presença era ruído e que os espaços estão repletos de revolução escritas nas paredes, acumuladas no chão, amontoadas nas ondas do mar, transitando pelos olhares que cruzam as figuras. Ao mesmo tempo em que eram buracos pretos ou brancos para onde eu mesma poderia me transportar. Eu também estava ali, vestida de silhueta.

 

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