Para corazones que laten: há mais futuro que passado...

Por Paul Moraes
23/06/2017

 

Demorei algum tempo para concretizar essas palavras, principalmente, pela falta delas em traduzir os lugares que foram atravessados em mim naquela noite. Portanto, quando essas palavras chegarem a vocês, muito do que senti já estará atrás de algumas camadas finas do tempo e nem por isso menos latentes em meu presente e meu futuro. Tão vivas que ecoam nessa escrita...

O espetáculo “Há mais futuro que passado” do Complexo Duplo é a estreia como diretora de Daniele Avila Small que sob a ótica do Teatro Documental, onde parte de sua pesquisa está focada, constrói uma narrativa entre o ficcional real e o vivido reinventado em doses equilibradas. Tornaram-se documentos importantes para esse processo criativo, um banco de cartas trocadas entre artistas que está sendo catalogado por uma Universidade colombiana, dessa forma, leio o espetáculo como uma carta aberta e viva a todxs que precisam ainda rever seus pensamentos e conceitos a respeito de questões  que tem sido normatizadas por uma sociedade que insiste em não avançar no tempo.

“A gente queria conhecer mais artistas mulheres. Porque a gente conhecia muito mais nomes masculinos do que nomes femininos na arte. Por exemplo, fala um nome de artista! O primeiro que vier na sua cabeça.”

Talvez tenha surgido rapidamente uma seleção de artistas em sua mente e no topo dela um nome masculino. Isso também me ocorreu, me atravessou. Há muita mulher fazendo arte desde muito tempo, sido adjetivada de lasciva no passado e dita de reputação elástica no presente, não tendo seus trabalhos (re)conhecidos pelos grandes públicos, público esse que consome mais do mesmo há muito tempo e nem sabe a razão. Então, “como sozinha é mais difícil,” elas se uniram.

Um clã de mulheres desde a diretora, como já fora dito. No cenário e iluminação, Elsa Romero e Ana Kutner, respectivamente, propõe entre véus, um intimismo necessário para quem irá trocar confidências e escancarar verdades. A escolha das mobílias da cena, a luz menos intensa e mais focada, e as projeções, fazem uma conexão entre o passado e o futuro. O figurino também contribui nessa leitura entre espaço tempo, mesclando traços de alta-costura com um tom mais despojado, idealizado por Raquel Theo.

“Pode-se apenas mostrar como se chegou a qualquer opinião que de fato se tenha.”

A dramaturgia tem uma escrita de poesia/informação e uma dinâmica objetiva e crucial que favorece o espectador em sua leitura. Pois ao mesmo tempo em que os fatos nos são apresentados nesse dossiê, é o vocabulário escolhido que nos remente a uma leitura poetizada e não menos crítica da crueza que a trama rasga. As responsáveis por essa organização são a diretora Daniele, Mariana Barcelos e Clarisse Zarvos. Zarvos, juntamente com Cris Larin e Tainah Longras são um elenco misto de idades, descendências e experiências de vida que contribuem para que esse espetáculo alcance o público de uma forma que seja possível ouvir sua luta-história na voz das atrizes em cena.

“É provável que a ficção contenha aqui mais verdade que os fatos."

Fica claro desde o início que essa é uma obra feita por mulheres, que buscaram referências dentro de um universo que pudesse contempla-las mais. Outras artistas mulheres e latino-americanas foram seu ponto de partida.

“Porque nós, brasileiras, somos latino-americanas.”

Diante dessa frase, um novo atravessamento: “ás vezes parece que isso não é muito claro para todo mundo. Que nós, brasileiras e brasileiros, somos latino-americanos.” Não parece mesmo, no instante em que ouvi isso, era como se tivesse ouvido uma novidade. Ser uma artista mulher latino-americana, não deve ser fácil. Somar mais de uma minoria nessa equação, torna a subtração quase uma certeza. Contudo, é da minoria que virá a revolução, já afirmam algumas teorias e eu, particularmente, vibro com esse pensamento. Precisamos saber mais de nós e de nossa real origem, precisamos deixar de consumir algo que nem sabemos ao certo quando começamos e porque ainda consumimos. Necessitamos avançar!

Por fim, revelo um não segredo. Durante as pesquisas sobre uma das artistas, eis que surge a frase “corazones que laten” da qual concluiram ser de uma poesia tremenda, mas ao traduzir descobriram que significa que são corações que batem, o que não diminui a poesia nos tempos de violência que vivemos. Creio que nessa trajetória o encontro entre esses corações que latiram e os que ainda batem no peito dessas mulheres, tornaram esse processo criativo um resultado prático-documental sobre essas minorias que “conseguiram furar o bloqueio de uma história da arte que é eurocêntrica, patriarcal, branca e rica."

            "Então, um brinde às artistas latino-americanas do passado, do presente e do futuro. Salud!"

 

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