Por Heloísa Sousa
08/09/2017
O mineiro Grupo Galpão é um dos grupos de teatro mais antigos e importantes da história do nosso país; completando 35 anos de (re)existência, o grupo apresenta artistas maduros com trajetórias admiráveis que reverberam em escolhas estéticas complexas, com um repertório de mais de 20 obras cênicas que já conquistaram o mundo, além de uma atividade política, cultural e social incessante e materializada na existência do Galpão Cine Horto (MG), espaço cultural que recebe diversos artistas do país, assim como propostas de encontros, diálogos e trocas entre profissionais e comunidade. O Grupo Galpão faz história tanto se nos debruçarmos apenas sobre o percurso do grupo, mas também se observamos a relação deles com o seu contexto. Não à toa, é também uma grande referência para artistas da cena que o sucedem.
Eu, praticamente, desconhecia o Grupo Galpão. Não que eu não soubesse da sua existência, da sua trajetória e importância; mas sim porque ainda não tinha tido a oportunidade de ver uma de suas obras e de experienciar esteticamente uma de suas propostas. E fico muito satisfeita de ter sido apresentada ao grupo através do espetáculo “Nós” (2016) dirigido pelo artista convidado Márcio Abreu.
Primeiro, alguns conselhos. Para assistir ao espetáculo “Nós” é necessária uma leve tensão no corpo que te permita estar atento, a mandíbula pode estar relaxada e você ficará levemente boquiaberto, o olhar deve acompanhar cada segundo do caos, os ouvidos devem tentar e fracassar em captar todas as sonoridades e palavras possíveis, o entendimento é sensorial e quando nada fizer sentido, você vai perceber que faz um sentido quase devastador. Esquece. Não são conselhos, é apenas uma descrição de como eu lembro que me sentia na cadeira do CineTeatro de Parnamirim. Lembro também de ter sentido que, nessa obra, o riso fácil é uma ilusão, a sopa era um veneno, a festa era uma estratégia de fuga, talvez. Nós, espectadores, reagimos rápido demais, mas o tempo de ser afetado é outro...
Saio do teatro. Vou comer algo em um bar com alguns amigos, irônico. A comida que eu sempre peço do mesmo jeito estava com um gosto estranho, literalmente. As presenças são estranhas. Tem vezes que a arte te deixa de um jeito que você não sabe bem como continuar. Volto para casa. Breve discussão com meu parceiro. Banal. Durmo. O sol nasce. A angústia me desperta, sensação de aperto, tem coisas que incomodam. Escrevo esse texto agora pela manhã, acho que de noite vou voltar ao teatro e me rasgar mais um pouco e talvez até arraste alguns familiares junto comigo... perdi meu juízo.
Em um espaço cênico delimitado com alguns objetos espalhados pelo chão, cinco atores e duas atrizes (des)organizam os espaços de uma cozinha, de uma sala de estar, de uma festa, de um palco, de um pensamento. A dramaturgia escrita por Eduardo Moreira e Márcio Abreu é muito potente, com circularidades e questionamentos atravessados que (des)constroem a narrativa e apresenta cenas singulares de momentos cotidianos de (des)encontros. O texto dito pelos intérpretes em cena é dinâmico e provoca um outro ritmo nos espectadores, variante entre a dilatação e o caos frenético. Com frases incompletas, conclusões superficiais e um bombardeio de dúvidas, a dramaturgia se aproxima da estética absurda, onde o existencialismo é mobilizador das discussões e a incapacidade de concluir alguma coisa é inevitável. A independência entre as cenas é tão forte que parece que o espetáculo vai se encerrar a qualquer momento, no entanto, tem sempre alguma coisa a mais para ser problematizada, tem sempre uma variação desconfortável das mesmas relações. Parece que fazemos tudo do mesmo jeito, de modo tão previsível e assustador simultaneamente.
Neste sentido, destaco a direção de Márcio Abreu por conseguir organizar uma obra onde o texto é imenso, mas ainda assim, os demais elementos cênicos comunicam e constroem sensibilidades. Não se trata apenas do que se entende, mas também do que se vê, do que se ouve, do que se cheira, do que se prova e de como nos assustamos.
Diálogo, sonoridades e desnudamentos. O elenco formado por Antonio Edson, Beto Franco, Eduardo Moreira, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara é um espetáculo a parte de presença cênica, verdade e maturidade. Com corpos que denunciam os anos e pesos da vida, na contramão dos músculos enrijecidos de jovens intérpretes, os artistas que invadem a cena no Grupo Galpão afirmam em uma troca de olhares o porquê de sua resistência. A musicialidade característica do Grupo Galpão aparece não somente nos momentos onde a música é cena por si só, mas também nos impulsos de fala.
A cenografia e o figurino dialogam com pensamentos da contemporaneidade e mostram espaços que se definem pela própria ação dos corpos e borram as fronteiras entre artista e personagem. A iluminação de Nadja Naira é crua e poética. A mobilidade e transformação que esses elementos exercem em cena mostram como a objetividade e simplicidade das ideias podem provocar experiências sensoriais únicas.
Esses sete corpos recriam espaços de convivência através de jogos com os objetos, com o outro, com o público e com o texto. O que surge dos momentos civilizados de encontros? E do cotidiano desgastado? Discursos repetidos, preconceitos, violência, afeto, esquecimentos, contemplação. Esses sete corpos parecem estar presos nesta sala de teatro e se forçam como família [agrupamento de pessoas que ocasionalmente traumatizam umas às outras], que mantém estratégias de sobrevivência [comer/beber] e ensaiam diálogos no meio dessas atividades. E não comunicam nada, não concluem nada, não se entendem. Já está tudo pronto, é só colocar na panela e deixa o tempo cozinhar. NÓS extrapolamos o limite do outro, violentamos. Depois, fica tudo bem. Toma uma sopa, bebe uma caipirinha, curte a festa, amanhã começa tudo de novo.
As associações com o cenário político do nosso país, com a realidade violenta reforçada pelas desigualdades sociais e com as marginalizações que provocam agressividades já foram discutidas por muitos críticos e espectadores. Mas, acho que também existe espaço para perceber as micropolíticas. “Nós” fala muito de nós. Da minha e da sua sala de jantar, de você que lê esse texto... Talvez fale também dos gritos de (in)dependência [era 07 de setembro]. Se quiser beber eu bebo, se eu quiser fumar eu fumo. Cuide de si, eu cuido de mim e nós nos cuidamos melhor.
Escrevi 11 parágrafos sobre um espetáculo, mas tenho a sensação que nada disso é representativo da experiência que é vivenciar “Nós”. E minha urgência em publicar esse texto, ainda antes da última apresentação do Grupo Galpão em Parnamirim, vem da minha necessidade em dizer: vá!