Por Heloísa Sousa
09/12/2016
Natal, 20 de novembro de 2016.
Grupo Cores Teatro (Natal/RN) estreia O som que se faz debaixo d’água (2016), o segundo espetáculo do repertório deste grupo, após seis anos da criação de sua primeira obra cênica As cores avessas de Frida Kahlo (2009). O grupo que surge como projeto de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) vem expandindo as fronteiras da academia para dialogar com outros espaços culturais da cidade, como no caso de sua última estreia na Boca Espaço de Teatros, localizado no bairro da Ribeira (Natal/RN).
Sou recepcionada pelo latido de Jamal, impressionado com tanta gente que entra pela porta do espaço. Casa lotada. Faz-se necessário destacar este momento em que Natal vive, onde ao mesmo tempo em que convivemos com o êxodo de alguns artistas que buscam outras realidades de trabalho e criação, também nos deparamos com um frenético fim de ano, com pelo menos outras quatro estreias em apenas dois meses de grupos como a Cia. Violetas, Sociedade T, Grupo Para eu parar de me doer e Grupo de Teatro Eureka, citando como exemplo. E junto com estas apresentações um público considerável que, por vezes, nos dar o prazer de ver os ingressos esgotados.
O som se propaga mais rápido embaixo da água. Quatro vezes mais rápido do que no ar. Em cena ouvimos uma sobreposição de sonoridades, ecos, vozes agitadas e intensas que nos transportam para um espaço mítico do fundo do mar, enfatizado pelos objetos e detalhes cenográficos como a rede de pesca, as tampas de garrafas e os bordados aplicados aos figurinos que lembram algas marinhas enroscadas nos corpos dos atuantes. A potência da sonoridade em cena - apesar dos excessos – é alcançada por uma afinação técnica no canto, na música e na interação entre esta linguagem e o teatro; e isso, ressalta a importância da valorização do encontro entre os profissionais de várias linguagens artísticas, que acontece neste espetáculo pelo trabalho de Adriel Bezerra e Fernanda Estevão na direção musical.
Essas sonoridades, junto com as movimentações sinuosas e as cores “de nudez” que se apresentam em cena me trazem à memória o mito das sereias. Uma figura recorrente nas narrativas de culturas distintas, mas sempre apresentando um corpo que vive no fundo do mar, como um peixe; criaturas híbridas que ao mesmo tempo em que envolvem o outro com sua delicadeza, podem também apresentar uma agressividade e fúria digna dos deuses. As sereias cantam e encantam, hipnotizando os homens, levando-os ao fundo do mar onde, consequentemente, se afogam. Mas, nesta encenação, não são os homens que se afogam, mas sim as próprias mulheres que se perdem em sua condição de “encantadoras” e veem seus corpos inundados por suas crises, pelas águas invasivas do outro, por seus abandonos e memórias não contadas, não partilhadas, mas afundadas.
A abordagem sobre o feminino é uma escolha do grupo que evoca um discurso sobre as inquietações que emergem deste gênero, unindo-se a uma urgência percebida em várias artistas mulheres por tratar delas mesmas e entrelaçar suas autobiografias com a criação artística. E em um movimento de exposição de suas intimidades, de seus corpos, de suas próprias questões, essas mulheres acabam tratando de micropolíticas e padrões sociais que antes de serem acatados, têm sido intensamente problematizados.
Em uma breve pesquisa pela internet encontro uma frase de Franz Kafka escrita em 1971 dizendo que: “As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seus cantos: seu silêncio”. Talvez esta seja uma das problemáticas do espetáculo, a ausência de silêncios. O silêncio dos corpos, o silêncio do próprio mar que permite a contemplação de sua infinitude e monstruosidade. O excesso de sonoridades e o excesso de imagens constroem uma encenação que parece querer atender ao desejo de colocar em cena tudo o que foi criado durante o processo de criação. Neste sentido, a dramaturgia apresenta fragilidades quando se percebe um discurso ou narrativa que não se completa, que não se encadeia e que deixa o espectador diante de um turbilhão de fatos desorganizados entre si. Faz-se necessário perceber a dramaturgia pra além da escrita de um texto que é dito, mas também como a própria (des)organização dos elementos cênicos a favor de uma organicidade que torna coerente os corpos, tempos e espaços evocados na encenação. As mitologias construíram parte do imaginário ocidental com grandes narrativas sobre a natureza e o próprio ser humano, e por dialogar com esse universo mítico e sagrado, a encenação transita pela história de um corpo feminino em descoberta e em relação. Consigo mesma. Com sua buceta.
Estuprada. Masturbada. Parida. O corpo feminino nesta obra parece ser dominado pela própria natureza, perde o controle de si e então, resta o grito, o canto. Em alguns momentos, quando as atuantes se organizam pelo espaço, parece estarmos diante do Nascimento de Vênus (1483) de Sandro Boticelli, pintor renascentista que recupera a cultura greco-romana e contribui com uma discussão problemática da beleza na arte.
Com o nascimento de Vênus – Afrodite, na mitologia grega – vem a beleza, a sexualidade, o amor erótico; que aprisiona o corpo feminino em sua obrigação de sedução. A beleza é uma amarra de desigualdade que categoriza os corpos e atribui uma “funcionalidade” as mulheres, que não corresponde as suas potencialidades de existência. E neste sentido, o feminismo é uma emergência.
A encenação escolhe falar do feminino ressaltando um consagrado ventre que consagra e sangra. Abordando as relações simbólicas e políticas entre a mulher e seu próprio corpo, entre o corpo feminino e a sociedade. O som que se faz debaixo d’água se junta às ações artísticas contemporâneas que afirmam o feminismo e nos convida a olhar e falar sobre, pelo menos, durante os 55 minutos de obra. Por isso, destaco mais ainda a relevância do espetáculo ser dirigido por uma mulher, a encenadora Lina Bel Sena, que após trazer a vida da artista Frida Kahlo ao teatro em Natal, agora abre espaço para que as artistas Naara Martins, Viviane Delgado, Fernanda Estevão, Franco Fonseca e Adriel Bezerra apresentem seus femininos.
Mas.
Junto a isso, mantenho a minha inquietação e necessidade de também ver em cena um feminino que não seja nem fértil, nem sagrado. Para que possamos perceber que a maternidade feminina é uma possibilidade e não uma condição; e mais ainda, para que possamos notar uma mulher para além do seu útero, para além de sua buceta.