Por Diogo Spinelli
31/01/2018
Entre os dias 25 e 28 de janeiro de 2018, o público natalense pôde assistir à obra Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, do grupo Nóis de Teatro. O espetáculo de rua, que comemora os quinze anos do coletivo cearense, teve suas três primeiras sessões realizadas na Praça da Árvore de Mirassol, sendo a última apresentada no Centro Cultural Jesiel Figueiredo.
As questões relativas à marginalização dos negros e aos processos sociais que vinculam nossa escravatura a esse contexto – explicitadas desde o título da obra, homônimo à canção do grupo O Rappa – são o principal mote do espetáculo. Dividida em três atos, a montagem inicia-se com um prólogo no qual os atores, ao adentrarem o espaço cênico, realizam movimentações ritualísticas que remetem a religiões de matriz africana. Rapidamente, essas movimentações transmutam-se em uma experiência orgiástica embalada ao som de funks e pancadões. Desse baile nasce Natanael, menino negro e pobre, cuja história será apresentada ao longo de toda a encenação. Se Natanael é gerado em um ambiente, a princípio, libertário, não demorará muito para que, contraditoriamente, ele entre em contato com uma sociedade que o oprime devido à sua condição.
Num primeiro momento, sobretudo na primeira parte do primeiro ato – no qual acompanhamos a infância de Natanael – o espectador pode ter a impressão de que a obra será composta exclusivamente por um apanhado de referências mais ou menos reconhecíveis à cultura afro-brasileira e trará uma perspectiva única e esquemática da trajetória de seu protagonista. Mas, como alertado pelos atores repetidas vezes ao longo do espetáculo, Todo camburão tem um pouco de navio negreiro trata-se de uma obra na qual, assim como apregoa Brecht em seus escritos teóricos acerca do efeito de distanciamento, é preciso duvidar do óbvio e questionar o que parece estar naturalizado.
Assim, na medida em que acompanhamos a trajetória de Natanael – que se torna policial militar no segundo ato, e no terceiro está sendo julgado pelo homicídio de outro homem, negro como ele – o discurso da obra vai gradativamente tornando-se mais ambíguo, e por consequência, mais dialético. Optando por uma dramaturgia claramente épica, o grupo complexifica a história de Natanael a ponto de, ao termos que julgá-lo como júri popular no fim do terceiro ato, não haver a possibilidade de realizar uma escolha de forma simples ou correta, sem considerar as contradições explicitadas pela montagem.
Auxilia a constituir essa complexidade o fato de, apesar de estarmos seguindo a história de Natanael, a obra trazer uma multiplicidade de personagens que lhe são similares seja pela cor, seja pela condição social, e apresentá-las em posições antagônicas dentro do contexto exposto. Exemplos disso são o próprio homem assassinado por Natanael, que poderia ser seu duplo, e as figuras da mãe de Natanael e da esposa do assassinado, que, cada qual com seus argumentos, problematizam o julgamento final.
Quem está com a razão quando um sistema faz com que uma população extermine a si mesma? É possível julgar Natanael de forma justa desconsiderando-se seu contexto? Desse modo, ao final da montagem, explicita-se o fato de que, independentemente de inocentarmos ou culparmos o indivíduo Natanael, isso não faz com que sejam modificados a estrutura e o mecanismo sociais nos quais todas aquelas personagens (e todos nós) encontram-se inseridas. Como modificá-los?
Apesar de ser uma obra que possui sua principal força no discurso argumentativo de sua dramaturgia textual, a encenação faz um bom uso de recursos teatrais simples, que resultam potentes na relação estabelecida com os espectadores no espaço público. Exemplos disso são as grandes estruturas e figurinos que remetem às divindades africanas, e os bonecos que representam ora Natanael criança, ora outros meninos ou homens negros. A conversão de parte da vestimenta de Iemanjá em manto de Nossa Senhora configura-se em outro exemplo de como, de forma sutil, a utilização dos recursos cênicos pela encenação reafirma o conteúdo que está sendo problematizado em seu discurso verbal.
Se a condução do público por vezes é truculenta e pode chegar a ser incômoda – quando em muitos momentos da encenação é necessário abrir espaço para que os atores ou as estruturas cenográficas entrem ou saiam do espaço cênico – essa ação não deixa de remeter à violência cotidiana contra a população negra explicitada pela montagem. Violência essa que está presente constantemente na encenação, seja através da divulgação de dados e casos reais de negros mortos recentemente em nosso país, da utilização de efeitos cênicos como o disparo de um sinalizador que impede a visão do público por alguns segundos durante uma ação policial, e em cenas de grande agressividade, como aquela na qual assistimos Natanael violar uma das atrizes.
Ainda que, inicialmente, a obra pareça abordar a questão negra de forma generalista, a partir de seu segundo ato Todo camburão tem um pouco de navio negreiro revela-se, sobretudo, como uma vigorosa obra de denúncia sobre a violência policial contra a população negra.
Findo o espetáculo, me deparo com algumas perguntas, sem resposta:
Quantas histórias de Natanaeis ainda teremos que escutar?
E nós, que nos acostumamos a conviver diariamente com tantos e tantos casos como o de Natanael, somos culpados, inocentes, ou apenas parte deste mesmo sistema?
E por fim:
Como modificá-lo?