Por Diogo Spinelli
08/12/2016
As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de renascimento. Estes três temas encontram-se nas tradições mais antigas e formam as combinações imaginárias mais díspares, ao mesmo tempo que mais coerentes. [...] Origem e veículo de toda a vida, a água é um símbolo universal de fecundidade e de fertilidade. A água é também um instrumento de purificação ritual. A ablução desempenha um papel essencial em todas as culturas. Pela sua virtude, a água apaga todas as faltas e todas as máculas. [...] Por isso a água é, ao mesmo tempo, morte e vida. [...] A água é o símbolo das energias inconscientes, dos poderes informes da alma, das motivações secretas e desconhecidas. Uma interpretação simbólica da água não pode deixar de reconhecer a clivagem que existe entre águas vivas, generosas e águas adormecidas ou pérfidas. Quando o nosso imaginário quer promover os valores das primeiras, os sonhos falam-nos de nascente, de rio, ou de mar. Quando quer realçar os valores das segundas, nos trará imagens do lamaçal, do pântano ou do charco. [1]
A despeito do que seu título possa fazer supor, O som que se faz debaixo d’água, segundo trabalho do Cores Teatro Surre-ritu-al, é um trabalho árido.
Meu primeiro contato com o espetáculo ocorreu durante a Mostra de Processos do Festival O Mundo Inteiro É Um Palco – Ano IV, em setembro deste ano, na qual pude acompanhar o excerto inicial da obra ainda em estágio processual. Ao adentrar o espaço cênico d’A Boca Espaço de Teatros na noite da estreia do espetáculo, o primeiro fato que me chamou atenção foi constatar as mudanças realizadas no âmbito da direção de arte do espetáculo no período que compreendeu essas duas apresentações: as vestimentas brancas e a predominância do azul que caracterizava a estética do excerto apresentado em setembro foram substituídas por figurinos e por uma caracterização nos quais prevalecem os tons de pele e as nuances terrosas – mudança essa que também foi incorporada, à sua maneira, na iluminação da obra.
Essas mudanças, ainda que pareçam irrelevantes se levarmos em consideração que na primeira das duas ocasiões não se tratava da obra finalizada, são, contudo, essenciais para sua leitura, uma vez que o espetáculo vale-se amplamente da carga simbólica dos elementos que utiliza para construir seu discurso cênico. Assim, ao escolher essa paleta específica, o coletivo enuncia imageticamente que seu mergulho não se dará em águas vivas, mas sim no lamaçal das águas adormecidas, caso nos utilizemos das interpretações simbólicas relativas ao verbete “água” tais quais classificadas por Chevalier e Gheerbrant em seu Dicionário dos Símbolos. Aliás, muito do que é apresentado na encenação parece corresponder ao que os autores identificam como pertencente à simbologia da água.
Há algo de onírico em O som que se faz debaixo d’água, o que remete imediatamente ao nome completo de seu coletivo criador, no qual as palavras surreal e ritual se fundem no neologismo surre-ritu-al. Essa ambientação onírica não se vincula somente ao tratamento simbólico dos elementos, resvalando em outros aspectos do espetáculo, como é o caso de sua dramaturgia e de sua direção musical. Se a física comprova que o som se propaga com velocidade quatro vezes maior debaixo da água do que o faz no ar, a experiência nos diz que a recepção das sonoridades emitidas nesse ambiente é invariavelmente distorcida para a audição humana. Se por vezes a conjugação do texto majoritariamente lírico com a sobreposição de vozes, instrumentos musicais e partituras corporais vigorosas ajuda a instalar na obra uma atmosfera ritualística, mítica e encantatória, em determinados momentos, as palavras chegam com certa dificuldade ao espectador, não sendo possível a compreensão (e a possível decifração posterior) de certos trechos da dramaturgia, sejam eles cantados ou falados.
Ao longo da obra, as questões relativas ao gênero feminino (tema de outros espetáculos natalenses recentes, como Violetas, da Cia. Violetas, e do anterior Manga Rosa, da Bololô Cia Cênica), sobretudo aquelas vinculadas à castração e a um possível percurso de empoderamento sobre seu próprio corpo e sexualidade, emergem na obra em uma sucessão de potentes imagens alegóricas, que surgem e se dissipam sem uma aparente lógica cartesiana e sem que seja possível ao espectador identificar algo que poderia caracterizar personagens específicos – a única diferenciação entre as figuras é aquela relativa à utilização ou não de uma rede no rosto, e que parece dotar as figuras que portam a máscara/rede de uma posição opressora para com aquelas que não a portam; relação que ainda assim aparece por vezes de modo ambíguo durante o espetáculo.
Apesar da plasticidade (e da violência) das imagens e do lirismo presente nas músicas e no texto do espetáculo, a labiríntica dramaturgia da obra apresenta ao espectador uma profusão de imagens/situações que, sem grandes sobressaltos, clímax, ou mudanças de atmosfera, acabam por não se fixar no imaginário com a potência que poderiam, talvez devido ao fato de não haver uma ênfase especial em qualquer uma delas ou por não existir no espetáculo nenhum fio narrativo que o espectador possa acompanhar. Tal como um sonho – ou pesadelo – a encenação se desfaz sem que seu fim seja pressentido por aquele que a sonha. Talvez O som que se faz debaixo d’água não seja uma obra para ser fruída pela ótica da razão. Talvez seu discurso, construído a partir de temas simples, mas que permanecem ainda hoje como tabus submersos em nossa sociedade, apele mesmo para o subconsciente do espectador.
[1] CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. Lisboa, Ed. Teorema, 1994.