Por Heloísa Sousa
14/09/2018
O espetáculo teatral “Meu Seridó” marca o surgimento da Casa de Zoé, projeto que reúne artistas que investem na produção cênica potiguar, idealizado pela atriz Titina Medeiros, juntamente com o dramaturgo César Ferrario. A obra traz para a cena a história do Seridó, região nordestina que abrange municípios do Rio Grande do Norte e da Paraíba e que se destaca pelas características ambientais e culturais. Esta é também a região onde nasceu e cresceu Titina Medeiros, uma das atrizes que concebeu esse trabalho; Currais Novos é sua cidade natal e ao se debruçar sobre as origens de suas origens, cria-se uma obra que desconstrói a história do Seridó e algumas de suas narrativas.
O Seridó, assim como nosso país, foi se constituindo a partir do encontros e cruzamentos (muitas vezes agressivos) entre diversos povos de culturas distintas. O período da colonização do Brasil foi marcado por invasões e domínios de terras já habitadas por comunidades indígenas, por parte de povos oriundos de diversas partes do mundo em momentos diferentes da nossa história. Isso configurou uma assustadora dizimação desses indígenas, uma sobreposição violenta de culturas e uma distorção de histórias a partir de perspectivas colonizadoras, construindo, por vezes, identidades culturais desvirtuadas. É importante pensar também que tudo isso não se configura apenas como uma construção histórica pontuada no passado e que merece ser revisada apenas por uma questão de veracidade e conceitos; essa construção afeta diretamente nossa percepção política, social e cultural, reverberando em ações atuais e nos trazendo diretamente para o momento crítico que vivemos no Brasil.
Vivemos a discriminação dos corpos dissidentes, o reforço dos discursos de ódio e de submissão, a desvalorização de estruturas de manutenção da cultura e da história brasileiras; mas também vivemos um forte momento de revolução, fortalecimento de pensamentos emancipadores, construção de estratégias de união de práticas libertárias e igualitárias e ainda, construimos contexto para práticas artísticas questionadoras e que apontam novas perspectivas sobre os discursos já conhecidos. Talvez pareça que estou destacando momentos históricos muito distantes e distintos, mas quando se trata do Brasil e seus interiores, o tanto de questões mal resolvidas em nossa trajetória, nos pede uma constante revisão e relação entre passado, presente e futuro. E as coisas mais estranhas entre si, podem se mostrar muito mais das origens uma das outras, do que imaginamos.
É provável que o espectador se sinta ignorante em muitos momentos do espetáculo, por descobrir que não imaginava muito sobre a história de uma região tão próxima a capital em que vivemos, ou ainda por ter de fato acreditado na perspectiva colonizadora que nos ilustrou uma história de europeus “descobridores”, ou além disso, ele pode até perceber que os “descobridores” se vestem melhor de “invasores”, mas que esses encontros entre povos não foram tão unilaterais assim. Uma dessas espectadoras sou eu. Pode ser também que você já conheça narrativas mais complexas sobre a história do Seridó e se depare com uma construção artística que mostra essa complexidade.
Com texto de Filipe Miguez, direção de César Ferrario e cenografia de João Marcelino, a obra apresenta três atores e duas atrizes em cena apresentando essas narrativas que parecem misturar referências do teatro épico, do teatro popular e do teatro documentário, sem se afirmar completamente em nenhuma delas. Apesar do caráter ilustrativo e objetivo com que as imagens criadas se desencadeiam, “Meu Seridó” é um espetáculo com bastante exploração estética e corporal, e se utiliza de recursos diversos para construir essas histórias, trazendo dinamicidade para a obra. A direção musical de Caio Padilha complementa essas explorações, trazendo nuances sonoras muito potentes que parecem criar diversas obras em uma só. Neste espetáculo, os corpos dos atores e das atrizes são espaços de experimentação de personagens, imagens, sons e paisagens.
Mesmo com uma proposta de desconstruir algumas narrativas históricas sobre o Seridó, a abordagem estética comum ao teatro popular e nordestino ainda se mantém através das cores, estampas e formas de apresentação do texto e dos gestos. O teatro popular nordestino que se constrói com referências na cultura nordestina, e talvez alguns estereótipos, também é um espaço de expressão e experimentação necessário. Embora, eu ainda me questione sobre o espaço do teatro performativo nordestino e suas dissidências em festivais... Apesar de uma equipe eminentemente masculina (precisamos pensar na presença das mulheres nos espaços teatrais e em funções “técnicas”), a obra também abre espaço na dramaturgia para questionar a cultura machista que violenta, apaga e enrijece o corpo feminino nos espaços nordestinos (mas não somente neles). Esse nordeste reconhecido pelas secas, pelas ausências, pelas mortes, pela aridez, é também lugar de resistência, sobrevivência, antropofagias, implosões e desvios.