[Aqui escreve uma menina e uma mulher...]

Por Heloísa Sousa
16/09/2018

Como fazer teatro para crianças que considere suas individualidades e capacidades de elaboração de pensamentos, dentro de suas experiências de vida? Uma possível resposta para essa questão é o espetáculo “Chapeuzinho Vermelho” do coletivo gaúcho Projeto Gompa. Dirigido por Camila Bauer e com dramaturgia de Joel Pommerat, a obra realiza uma experimentação em um teatro contemporâneo, sensível e sugestivo para um público de menor estatura, mas de enorme imaginação. Apesar de ser compreendido como teatro infantil, a obra não se direciona somente a este público, antes disso, considera-o também dentre as variações humanas possíveis de espectadores e oferece uma obra democrática, com grande apelo aos sentidos, muita qualidade técnica e leituras variadas a partir de uma fábula simples.

O espetáculo é baseado na tradução do texto “La Petit Chaperon Rouge” de um dos diretores e dramaturgos mais importantes da cena contemporânea francesa. Pommerat vem tendo seus textos montados por diversos grupos e artistas em outros países. E as fábulas infantis são uns dos seus pontos de interesse, recriando narrativas que perpassam entre o universo infantil e o adulto, sugerindo outras leituras e associações. O autor também já criou versões para os contos de “Pinóquio” e “Cinderela” em 2008 e 2011, respectivamente, tendo este último sido apresentado em uma das edições da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Nessa montagem brasileira de “Chapeuzinho Vermelho”, a encenadora Camila Bauer reconta a história explorando todos os elementos de cena possíveis, desde o corpo até os sons, luz, objetos e vestimentas. Dessas explorações surgem uma construção imagética muito potente que ao invés de ilustrar as narrações, dialoga com as palavras sugerindo ludicidade no jogo com as situações encenadas. Ao contrário de reduzir nossas leituras sobre a obra e trazer percepções clichês, fechadas e fáceis sobre o que se passa, a encenação se abre para a imaginação e constrói singelos estranhamentos no espaço cênico e nas movimentações do corpo que disparam nossos sentidos.

Em cena, as atrizes e os atores dançam enquanto a história é narrada. O espetáculo se apropria de uma lógica coreográfica para desenvolver imagens do corpo associadas às personagens. Esse cruzamento entre as artes do corpo e as artes visuais potencializa a experiência cênica e cria no espectador uma expectativa sobre a imagem que virá posteriormente, principalmente sabendo que a narrativa contada já é de conhecimento da maioria da plateia. É necessário destacar o respeito com que o grupo lida com a recepção desse público. A sensibilidade de lidar com cenas de medo e abuso de modo sincero mas sem agredir os sentidos das crianças que assistem, de assumir o jogo teatral e permitir que as mesmas se relacionem com esse duplo ator/atriz-personagem, tudo isso sem subestimar as capacidades sensoriais e cognitivas desse público.

A cenografia assinada por Élcio Rossini é minimalista e nos faz lembrar do próprio exercício criativo da criança, que consegue transformar qualquer simples objeto em uma infinidade de possibilidades. Os “brinquedos” cenográficos de Chapeuzinho Vermelho se resumem a um tecido com fios pendurados que nos lembram galhos de árvores e um grande cubo multifacetado. Mas, apenas isso já se torna mais do que suficiente para tudo o que é sugerido na obra. Quando o cenário é simples e ressignificado continuamente a partir do encontro com o corpo do intérprete, a iluminação ganha espaço para criar recortes, sombras e direções que sugerem diversos espaços em um só. A simplicidade, objetividade e desenvolvimento da obra surpreende; a sensação do espectador é de estar visualizando dezenas de lugares diferentes em um mesmo palco. Ma,s nessa alquimia, a imaginação da plateia é elemento fundamental. Teatro é luz e a iluminadora Thais Andrade realiza um trabalho magistral, poucas vezes vi uma iluminação tão potente e interventiva em cena.

O ator-narrador conta a história com clareza e objetividade pensando na recepção das crianças. Ao mesmo tempo em que as experimentações estéticas são consistentes e potentes também ao olhar do adulto. Talvez a distância entre o olhar da criança e o olhar do adulto não seja tão imensa assim. Obviamente que a recepção muda devido a experiência de vida desses corpos; mas, a criança possui uma capacidade de concentração e interação com elementos lúdicos, imaginários e artísticos que, por vezes, são subestimadas por produções cênicas estereotipadas e discursivamente limitadas. Em “Chapeuzinho Vermelho” não vemos vozes imbecilizadas, excesso de cores e formas desconexas ou excessivas explicações fáceis sobre o que já está posto. Pois a intenção é justamente oposta a isso, é necessário que a criança tenha espaço para criar repertório visual e sensorial ao longo da vida, que a estimule a criar pensamentos a partir daquilo que vivencia, se questionando, duvidando e sugerindo; dentro de suas possibilidades de expressão.

Enquanto mulher adulta, encenadora, 27 anos, sem filhos, ouvir novamente a mesma história que esteve presente em minha infância foi uma experiência peculiar e memorável. Poder ver as nuances do conto sobre o abuso infantil ou ainda sobre a disseminação da lógica do medo sobre o corpo das mulheres (muitas vezes, sustentado pelas próprias mulheres, de mãe para filha), que não eram tão visíveis durante a infância. Por trás de “Chapeuzinho vermelho” uma discussão feminista. Por que nos fazem acreditar que nunca estamos prontas para seguir só?

Há uma questão presente em muitos textos de contos como esse que merece destaque. É interessante como se desenvolve a história entre a mãe (ou madrasta) e a filha, como se dá os diálogos entre os femininos e os discursos questionáveis que se apresentam. Mas, no fim, o lobo mau (ou o príncipe, qual é mesmo a diferença?) finaliza sua participação na narrativa apenas tendo a barriga cortada, costurada e decidindo não mais fazer isso. Estranho. As figuras masculinas dos contos são simplistas, instintivas e sem muitas elaborações de pensamentos e sentimentos. Para as mulheres restam o medo, o sofrimento e a espera. Ainda me espanto com o quanto essa obra reverberou em mim, o quanto me fez rever minha própria trajetória de mulher e questões feministas presentes em meus discursos; tudo isso a partir de um simples conto infantil.

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