[Carta-Crítica]

Por Heloísa Sousa
19/09/2018

Querida Nina, falo aqui sobre o que vivi...

Às 12h sai do hotel e fui almoçar em algum lugar próximo. Comi pacientemente e fui andando até a Praça Rui Barbosa, descobrindo essa cidade que me recebe a cada passada. Me perdendo um pouco, mas confiando em tudo. Cheguei na praça às 12h50min e resolvi entrar num grande museu que existe em frente. Parei e tomei um café. Lentamente. Li algumas mensagens no celular, vi algumas fotos, tudo meio enfadonho. Sai do café às 13h22min (sim, eu sou meticulosa e observo os minutos de quase tudo que é importante pra mim). Segui de volta para praça à procura de algum banner, algum grupo de pessoas com crachás, alguns fotógrafos ou qualquer coisa atípica para uma praça e que indicasse o espaço da performance. Não encontrei nada e comecei a pensar que de fato me perdi, que estou no lugar errado. Vejo uma mulher de branco sentada, de longe. Não vejo detalhes, não vejo bem o rosto da mulher, mas quase imediatamente te identifiquei, Nina. Havia alguma coisa na sua presença que me chamou atenção. Me aproximei. Um homem fotografava de longe, sutil e discreto. Nada de banners, ou grupo de pessoas ou coisas do tipo. Tudo sutil e discreto, tudo paisagem, tudo misturado com o cotidiano daquela praça.

Pensei. Vou observar de longe, por 1h talvez, vou vendo o desenvolvimento da ação, vou vendo a reação do público e pronto. Volto para o hotel, escrevo e fim de papo. Mas não. Algumas poucas pessoas começaram a se aproximar de você e falar algumas coisas contigo que eu não conseguia entender pela distância. Resolvi me aproximar mais. Uma mulher senta do teu lado e começa a colaborar com sua ação. A querida Valéria. Quase imediatamente, sem muitas reflexões, eu disse para você: “Eu não tenho filhos, mas posso costurar junto contigo?”. Lembra? E você permitiu. Abriu uma exceção para mim, porque segundo seus desejos, você gostaria de costurar com mulheres mães.

E ali eu fiquei, durante três horas seguidas. Das 13h30min até às 16h30min, até eu não conseguir mais (maldita rinite alérgica). Depois, encontrei com a Valéria e ela me disse que vocês ainda ficaram até 17h30min, mais ou menos. Lamentei por dentro não ter aguentado mais um pouco, no entanto, aquelas três horas pareciam ao mesmo tempo três minutos e três dias. Não senti o efeito do tempo, mas senti o efeito do afeto.

Vou esclarecer a alguns outros leitores, o que estávamos fazendo. Há alguns anos, Nina vem pesquisando sobre gênero e feminismo através de performances e intervenções urbanas, se relacionando com diversas pessoas em diferentes espaços. Em “Chorar os Filhos”, a artista desenvolveu uma coleta de relatos de mães que perderam seus filhos para a violência policial em nosso país. É importante destacar que a maioria desses filhos perdidos foram jovens inocentes atacados apenas pela sua cor de pele, sua condição social ou pelo lugar em que viviam. Além disso, a dor de perder um filho assassinado por um agente do Estado e ter que lidar com a injustiça de uma impunidade no sistema penal, é de uma dimensão difícil de imaginar. Esses relatos das mães foram escritos em pedaços de tecidos brancos, com canetas vermelhas. Nossa ação, consistia em costurar esses panos com linha vermelha a fim de que fossem acoplados a um vestido branco, formando assim uma mortalha. Nina pretendia continuar tecendo essa vestimenta por mais dois dias.

Nina, lidar com linhas é algo muito comum a minha mãe e minhas avós, o modo como meu corpo se relaciona a essa materialidade me traz elas à memória e retorna ao meu corpo os mesmos gestos observados por anos de infância. No entanto, os relatos que eu estava costurando, não me eram tão familiares assim. Eu, mulher branca, de classe média, educada em um contexto burguês, entre shoppings e escolas particulares, com oportunidades singulares, heterossexual, cisgênero. Eu e as mulheres de minha casa não vivemos esses relatos, não vivemos essas dores e nem nos sentíamos ameaçadas por elas. Eu não precisei sair de minha cidade para não morrer, eu não precisei chorar os filhos. De meu lugar privilegiado, ouvi muitos pensamentos desumanos e que desconsideravam o direito do outro à vida. Ouvi muitos discursos de punição apenas para os desfavorecidos, estratégias de tornar as vozes dominantes isentas das responsabilidades sobre seus atos. E apesar de não ter a prática da costura, me esforcei na delicadeza daquele trabalho, na união daquelas memórias, na exposição daquelas dores como modo de buscar afetar o outro, afetar a mim mesma. Essas histórias não podem e não devem ser esquecidas. Eu não as vivi, mas você me deu a oportunidade de vive-las de outro modo agora.

O tempo passava e algumas pessoas passavam também. Me impressionei, Nina, com como você conseguia perceber que o transeunte tinha alguma relação com aquelas narrativas apenas pelo modo como o corpo dele lia e reagia minimamente a tudo aquilo. Lembro com muita força, de mulheres negras e homens negros se aproximando, e de como eles se sentiam pertencentes aqueles fatos contados, aquelas dores. Lembro de mães sensíveis que não puderem costurar os panos conosco, mas que nos deram histórias e palavras com muita generosidade. “Minha mãe enterrou três filhos... muito bonito o trabalho que você está fazendo”. E ela ainda nos compartilhou a foto da filha de poucos anos de idade, ela, saída da cidade em que nasceu para não ter o mesmo destino. “Eu tive um filho assassinado, eu sei o que é isso”. Um homem. Alguns pais também compartilham essas dores.

O tempo passava e tivemos algumas conversas. Falamos sobre ser mãe (e eu ouvi), falamos sobre feminismo, sobre as dores das mulheres que perderam seus filhos, sobre conexões, falamos um pouco sobre os homens (e eles precisam muito falar mais sobre eles mesmos). Vocês, Nina e Valéria, foram um pouco minhas mães naquele banco. O quão necessário é para uma mulher, ouvir as vozes (ou ler as palavras) de outras mulheres. Naquele pequeno banco, cabia nós três, muitos tecidos, linhas, agulhas e bolsas. Mas, haviam muito mais mulheres ali tornadas presentes por aquela ação.

Por quanto tempo ainda iremos ignorar essas vozes? Vozes de mulheres, negras, pobres, lésbicas, trans... Vozes de pessoas que passaram por experiências desumanas. O que deve ser feito? Não esquecer talvez seja um primeiro passo. O sentimento de revolta nos mobiliza a continuar mexendo naquilo que muitos querem apenas enterrar. Não são apenas corpos, são vidas, são trajetórias, são pensamentos violentados por razões incoerentes sustentadas há muitos anos por uma lógica de poder, que precisa ser questionada.

Fico me perguntando qual o sentido de fazer uma performance, para quê tudo isso? Quem, de fato, é afetado por uma intervenção artística como essa? Talvez, a motivação primeira seja a de afetar-se a si mesmo [o/a artista], mexer com nossas entranhas, tornar mais que visível aos olhos, tornar carne. Ser consciente em demasia daquilo que o sistema social ensina a ignorar. Transformar talvez. E nesse movimento, o artista, indivíduo coletivo, compartilha com o outro. O Outro se afeta junto, divide suas vivências também. Vamos tecendo essas histórias e memórias. Muitos ainda vão ignorar, vão olhar de modo estranho e fingir que aquilo não estava diante deles ou que não os dizem respeito. Mas nós seguimos tentando, insistindo.

Há muito mais em mim, depois dessa experiência, que não cabe aqui ser dito. Gratidão Nina, gratidão Valéria, por me mostrar todas essas mulheres.

Heloísa.

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