Por Heloísa Sousa
22/09/2018
“Batucada” é um dos trabalhos mais recentes do coreógrafo Marcelo Evelin. Artista nordestino, piauiense, fundador da plataforma de criação em dança Demolition Incorporada e um dos nomes mais importantes da dança contemporânea brasileira.
A obra é uma composição de corpos diversos entre sons, imagens e movimentos [olhares também] por um espaço incomum, configurando ritmos e paisagens [corporais e sonoras]. Não há um discurso pronto e expressado “didaticamente”, mas há muito a ser pensado e dito a partir dessa experiência de presença.
Muita gente. Muita gente mesmo. Homens e mulheres. Muito corpo. Entramos todos no Espaço Itambé (BH), um galpão enorme, muito grande mesmo, com pilastras brancas e descascadas, com chão de cimento, com sujeira, pó. O público era muita gente e coube todo mundo. Vários balões vermelhos em formato de coração no teto, muitos balões mesmo, de verdade. Uau! O corpo acessa a memória de infância numa velocidade absurda, quase impossível não começar a brincar. Quero levar o balão para casa. Os batucadores são muitos, muita gente. Quase cinquenta pessoas (não sei ao certo quantos eram). Homens e mulheres. Vestidos com roupas normais, calça, saia, camisetas e máscaras. Máscaras pretas com buracos nos olhos circundados de lantejoulas vermelhas e um nariz bem pontudo e molenga, vermelho. Panelas e latas em mãos, pedaços de paus também.
A presença é uma questão. Em um mundo de discursos vomitados e muitas vezes, não praticados, a presença pode sugerir muitos conflitos e transformações. O olhar dos corpos em arte que se cruza com o olhar dos corpos que buscam a arte. Estar perto, sentir o suor, a respiração. Estar vivo. Perceber o outro se movendo e se colocando em diálogo, provocar ações e reações. Trabalhar sobre a presença é um exercício de afeto. Eu sei que eu falo muito sobre afeto, mas do que mais eu poderia falar?
E então, os corpos em arte começam a BATUCAR. E a mover-se pelo espaço em reverberações do corpo, em coletivo, pelo batuque. Existe uma potência ímpar em ver multidões ou grupos volumosos em ação. Esse bando que se constrói no espaço nos integra e se distancia, cria pertencimentos. Ao mesmo tempo em que ouvimos paisagens sonoras, entre ruídos e silêncios, sons ritmados e outros nem tanto, vamos formando também paisagens corporais pelo espaço. Isso porque ao mover-se [em bando], não determinando “espaço cênico” que divide performadores e plateia, nós que somos espectadores passamos a nos mover também. A batucada, sonoridade comum aos ouvidos brasileiros, faz pulsar, faz querer dançar, querer estar junto. Em alguns momentos, em ápices mais agressivos, gera medos. Medo de choques entre corpos, dores e desorientações, falta de controle. E nesse paradoxo de sensações vamos construindo nossa experiência estética com “Batucada”.
Um amigo me fala que em alguns momentos a ação se esgota e ele se desconecta enquanto espectador. Mas, amigo, a vida não é assim? O esgotamento da ação é que abre espaço no corpo para outros focos e reconstruções. A cobrança da obra artística como algo continuamente arrebatador, não nos coloca numa condição capitalista que exige o máximo de aproveitamento e sustentação do interesse em todo o tempo? Não seria a arte anti-capitalista por excelência, aquela que desperdiça tempo e vai explorando os modos mais absurdos e inúteis de fazer/ver/pensar as mesmas coisas? E não seria justamente nessa inutilidade onde encontraríamos o nosso potencial criativo e visualizamos rupturas de sistemas? Não sei.
Também não sei se “Batucada” tem algo a nos dizer. E me interessa também esse não-dito.