Por Heloísa Sousa
21/11/2018
Durante a primeira edição do Festival Território Cênico no Tecesol (Território de Cultura, Educação e Economia Solidária) em Natal (RN), tivemos a estreia de dois espetáculos do Grupo de Teatro Facetas, Mutretas e Outras Histórias. Além da peça “A Jornada de um Imbecil até o Entendimento” com texto do dramaturgo brasileiro Plínio Marcos (tem texto crítico de minha autoria, sobre essa obra, publicado neste site), nós pudemos assistir também a estreia de “Sal, Menino Mar”, um espetáculo infantil inspirado no livro “Mar Doce Lar” de Liana Mendes e Fernando Suassuna.
Quem trabalha com as artes da cena sabe dos desafios e turbulências derivadas de uma estreia. Escolher estrear duas obras, então, é duplicar essa experiência; ainda mais quando as obras parecem ser tão distintas e direcionadas para públicos diferentes. Apesar dessas diferenças, são os mesmos artistas envolvidos e é perceptível algumas semelhanças estéticas que evidenciam traços do processo criativo, das motivações políticas e pessoais desses artistas, assim como das condições de criação de todo o aparato cênico.
O livro que inspira a peça teatral, escrito pela pesquisadora e bióloga em parceria com o renomado escritor brasileiro, busca trazer um cenário lúdico e uma narrativa que conscientize as crianças sobre a vida marinha, sua preservação e as ações nocivas do ser humano que prejudicam o equilíbrio desse ecossistema. Sal é o protagonista dessa história, um menino apaixonado pelo mar e pela vida que o habita. Quando recebe a oportunidade de passar um momento debaixo da água, aproveita para conhecer ainda mais os animais e conversar com eles. Nesses diálogos, percebe que a vida marinha precisa de ajuda, pois está sendo constantemente ameaçada pela poluição, pela pesca predatória e outras ações que podem levar a sua extinção. Mobilizado por todas essas experiências e conhecimentos, Sal se empenha na árdua tarefa de proteger os mares e evitar que o pior aconteça.
Na adaptação feita pelo Grupo Facetas, o ator Ênio Cavalcante e a atriz Giovanna Araújo se revezam na atuação da personagem principal que é personificada por um chapéu laranja e um avental azul. A sintonia estabelecida entre os dois artistas favorecem o jogo cênico com soluções simples, mas que ao mesmo tempo atiçam a imaginação e convidam o espectador a fazer parte da grande “brincadeira” de fazer teatro. Escolher evidenciar os artifícios teatrais, quase em uma estratégia épica, onde as personagens se corporificam em cena, a construção dos objetos fica evidente e a ideia de que estamos diante de um ator e uma atriz e não de figuras fantásticas reais é algo destacável. Ao contrário da magia construída em muitas obras cênicas infantis que trazem um universo lúdico das personagens como sendo real para as crianças; nesta obra, o Grupo Facetas busca trazer para esse público a ludicidade do fazer teatro, as possibilidades de criação com essa arte e talvez, ressignificando suas presenças enquanto adultos, que neste caso, fazem uma “brincadeira séria” com muitas questões a serem abordadas e refletidas.
Lembro-me de um pai que estava ao meu lado com a filha no colo, a menina aparentava ter entre dois e três anos. Ao iniciar a peça, o rapaz pode ter pensado que precisaria envolver a criança na experiência ou explicar o que estava acontecendo. Eu um impulso amoroso, com a entrada dos atores e o desenrolar da primeira cena, ele fala algo como: “Olha filha, o Sal está na praia!”. A menina responde meio indignada: “Shhhh!!”. Eu sorrio na cadeira ao lado e o pai meio desconcertado pede desculpas para a filha e volta a se concentrar na peça. Esse pequeno gesto já demonstra um tipo de relação estabelecida entre esse público de menor estatura e a encenação apresentada. Com uma visualização breve do cenário estabelecido, com o desenrolar da peça, a criança percebe de imediato o jogo que ali se estabelece e dentro de sua capacidade cognitiva – nada limitada – já se posiciona dentro das regras do teatro, da sua condição de público e assume o trabalho e a ludicidade que acontece diante dos seus olhos.
No texto crítico sobre a obra “A Jornada de um Imbecil até o Entendimento” do mesmo grupo, eu discorro sobre uma possível “estética da precariedade” que também aparece em “Sal, Menino Mar”. Neste caso, a apropriação de objetos variados e do “lixo” para a construção de cenários e figurinos se tornam mais coerentes com a temática da obra. Além de ser uma estratégia de reutilização e reaproveitamento de materiais, é também uma atitude que tomamos com frequência em nossa infância, quando transformamos caixas em aviões, canudos em pessoas e papel em casinhas. Talvez, a fragilidade do espetáculo esteja na construção de algumas imagens e vestimentas para as personagens, quando associamos com facilidade a algumas figuras já conhecidas no Universo Disney, como a figura do polvo que nos lembra o capitão Davy Jones de série “Piratas do Caribe” ou ainda ao universo aquático do filme “Procurando Nemo” com o seu famoso peixinho laranja. As produtoras cinematográficas holllywoodianas que bombardeiam o imaginário das crianças com figuras e estéticas estabelecidas em uma mesma lógica visual, ao mesmo tempo em que contribuem para a experiência lúdica delas, podem limitá-las a perceber outras possibilidades de representação e criação. Incluindo a alternativa de apresentação de mundos menos coloridos, iluminados e divertidos; trazendo outra faceta das nossas existências que também são vivenciadas na infância.
Em contrapartida, a narrativa simples e acessível se conecta com nossa experiência corporal individual. Sal observa a quantidade de lixo na beira da praia; nós, residentes em uma cidade litorânea, nos deparamos com as mesmas imagens. Impossível não compreender minimamente o incômodo da personagem, nem se identificar com sua motivação. A mensagem de conscientização sobre nosso papel em preservar os mares e a natureza é transmitida com eficiência e simplicidade. Em tempos atuais, onde o planeta Terra clama por uma transformação das ações do ser humano sobre sua superfície – e profundidades – o espetáculo dialoga com questões urgentes. Em minha condição de artista e professora, não posso deixar de pensar no quanto essa apresentação precisaria alcançar várias crianças e adultos; não como estratégia única e salvadora, mas como uma das possibilidades pedagógicas e estéticas para iniciar um diálogo sério sobre as questões ambientais, seguidas de ações e projetos eficientes e amplos, seja a nível institucional ou dentro de nossas próprias casas.