Por Heloísa Sousa
18/11/2018
A dramaturga e atriz escocesa Jo Clifford esteve presente no FIT-BH pela segunda vez, mas neste ano com o espetáculo “Eve”, montado a partir de um texto de sua autoria e com direção da britânica Susan Worsfold. Em 2016, Clifford trouxe para Belo Horizonte a obra teatral “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” que tem circulado pelo país em uma versão criada pela atriz brasileira Renata Carvalho.
Jo Clifford é uma artista com trajetória consistente, escreveu mais de 90 textos teatrais e passou a deixar que suas obras dramatúrgicas fossem atravessadas por questões de sua própria existência. Sua vida como uma mulher trans vem suscitando uma série de questões que são postas em cena, desde a relação com seu próprio corpo até a censura e o preconceito enfrentados no seu cotidiano e na expressão de suas criações artísticas.
Em “Eve”, a autora apresenta sua própria história. Somos convidados a um encontro com Clifford ainda bebê, passando por sua adolescência e vida adulta. Imagens da artista em diferentes fases da vida são projetadas em um grande quadro no fundo do palco. Enquanto vemos fotos de John Clifford na tela, também estamos diante de Jo Clifford sentada em um simples banco branco narrando toda a sua trajetória. O espaço cênico criado lembra um corredor de uma galeria de arte, onde Jo observa quadros de sua própria vida, em uma posição contemplativa, ao mesmo tempo em que narra e reflete sobre vários momentos pelos quais passou até chegar na mulher que podemos ver ali diante de nós, no palco do teatro. O título da peça, uma versão inglesa para o nome Eva, tida como a primeira mulher criada no mundo segundo narrativas bíblicas, parece ser uma alusão à criação de Jo enquanto mulher, ela mesmo por ela mesma. As referências cristãs nos textos de Jo não são inéditas e mostram uma aproximação dos questionamentos da autora com os ideais de amor pregados pela vida de Jesus Cristo, mas ao mesmo tempo negados na prática por muitos que se dizem cristãos.
A obra teatral é uma narração necessária sobre mulheres trans, cujas histórias e existências ainda são tão marginalizadas e invisibilizadas. Para além disso, a obra é também uma forma de nos lembrar que somos também uma criação de nós mesmo, por nós mesmos. Para além de seres humanos forçados a seguir padrões sociais ou a pensar, agir e se manifestar a partir de qualidades impostas aos nossos corpos desde a tenra infância, nós somos uma potência de criação corporal e existencial. Clifford nos lembra do direito de sermos o que precisamos ser e da necessidade de liberdade para expressar isso, independente das condições biológicas em que nascemos.
Apesar do tom narrativo da obra e das poucas ações e imagens corporais elaboradas pela atriz, a encenação conta com um desenho de luz muito sensível que transita entre cores suaves e que contribuem para dar um tom de amorosidade em uma história tão densa como a que é contada. Apesar das dificuldades e sofrimentos vividos por Jo, o espetáculo é apresentado como um exercício de compreensão consigo mesmo e com o outro. A trajetória de qualquer indivíduo é uma eterna passagem entre conflitos e felicidades, observar a si mesmo como caminhante, como dúvida, como transformação é um desafio de amor próprio, principalmente em uma sociedade tão obcecada pelo acerto e pelo sucesso. A trilha sonora também compõe essa paisagem e parece nos conduzir para a sensação mínima de liberdade vivida por Jo ao conseguir se afirmar inteiramente como mulher nesse mundo. Mesmo nos apresentando um teatro textocêntrico, pautado na construção dos sentidos a partir da palavra, Jo parece ter escolhido o formato ideal para essa história. Existe uma relevância singular em fazer com que pessoas como nós, espectadores, pare por algumas horas para ouvir a sua história que reverbera na história de muitas mulheres trans brasileiras, mesmo que os contextos sejam bem diferentes, inclusive no nível de violência com que esses corpos são tratados.
Para além da apresentação da obra em si, o debate final conduzido pela crítica e pesquisadora Michele Rolim com participação de Clifford e da diretora Worsfold, foi parte fundamental da experiência cênica. Algumas pouquíssimas mulheres trans estavam na plateia e levantaram a questão crucial da ausência de pessoas trans nos mesmos espaços que se propõem a discussão sobre suas vidas. A presença de Jo Clifford com seu trabalho de atriz e dramaturga, em festival de importância nacional e internacional como o FIT BH já é uma grande conquista. Mas, e os outros lugares? Como pensar sobre o por que as pessoas trans não estão também ocupando espaços na plateia, na posição de críticos, mediadores, debatedores, ou ainda de encenadores, iluminadores, técnicos de palco, entre diversas outras funções possíveis no cenário artístico? A fala de Juhlia Santos, ativista trans de Belo Horizonte, apontando essas questões que acabo de citar intensificou a complexidade política dessa experiência estética.
E as pessoas cisgêneras, me incluindo, em nosso lugar de privilégios, não podemos continuar com discursos de “igualdade” que só mantém e preservam esses mesmos privilégios. É necessário problematizar, gerar desconfortos, mudar perspectivas e abdicar de posições para observar o outro ocupando esses espaços também. Precisamos ouvir mulheres como Jo e Juhlia.