Por Heloísa Sousa
31/03/2019
A sexta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo trouxe para a capital brasileira, três espetáculos do renomado encenador suíço Milo Rau. Reconhecida como uma das mostras de teatro mais importantes do país e com forte influência na composição, circulação e pesquisa da cena contemporânea no Brasil, neste ano, o artista citado acima aborda em suas obras histórias verídicas de violência e questões político-sociais através de uma investigação estética calcada no teatro do real.
Embora o teatro nunca tenha de fato se distanciado da realidade – mesmo quando aparenta se desviar das questões mais urgentes vivenciadas em sociedade, ainda assim uma obra revela nas entrelinhas essas próprias questões quando problematizamos as escolhas estéticas dos artistas. Neste caso, Milo Rau enfrenta fatos verídicos do modo mais objetivo possível, e traz casos veiculados intensamente pelas mídias através de uma abordagem teatral. E então, nos deparamos com a questão de qual seria a colaboração do teatro nesta (re)apresentação dos fatos. O que e como ele nos faz (re)pensar aquilo que já conhecemos, mas que ainda permanecemos inertes diante do mesmo. Embora saibamos da emergência de atitudes de transformação e revolução macro e micropolíticas que possam sugerir um novo futuro social.
A ação antiética e a inércia são tensionadas na peça teatral que traz a narrativa do assassinato do jovem gay Ihsane Jarfi na cidade de Liége, na Bélgica. O rapaz foi espancado até a morte por quatro outros homens na saída de um bar. Seu corpo foi abandonado na estrada e encontrado dias depois. Este ocorrido de 2012 marcou o país e trouxe à tona discussões sobre homofobia e políticas públicas. Em 2018, Milo Rau estreia o espetáculo “A Repetição. História(s) do Teatro (I)” que recria esse fato.
Em cena, vemos seis atores e um técnico de câmera, todos no mesmo espaço cênico que se constitui de alguns objetos comuns que vão construindo sugestões de espacialidades distintas: cama, sofá, cadeiras, mesa. Durante a encenação passamos por vários ambientes, desde uma sala de teste de elenco para a composição do espetáculo, até o quarto onde os pais de Ihsane suspeitam do desaparecimento do filho, o bar onde foi visto pela última vez e o carro onde ocorre o assassinato. Todos esses fragmentos da história são colocados em cena ao mesmo tempo em que são exibidos em um telão – como um cinema – apresentando alguns elementos que confunde o espectador entre aquilo que está sendo encenado no momento presente e gravações feitas anteriormente.
Primeiramente conhecemos os atores e atrizes da encenação, simulando um teste de elenco e a capacidade de agir em cenas de violência, nudez ou romances. Estamos diante de vários artifícios do teatro usados para (re)compor os fatos. Em seguida, o elenco assume algumas personagens e nos mostra como tudo aconteceu. O encenador se concentra na noite do assassinato e no encadeamento dessas situações, sem nos dar muitas pistas das figuras antes daquele momento. No final, há um julgamento onde todos, elenco e público, são colocados à prova. Com a força da narração e do imaginário criado pelo público a partir das palavras, um ator reproduz uma situação já contada no início do espetáculo. Ele deixa uma cadeira na boca de cena, uma corda preparada para enforcar uma pessoa se desprende do teto. Ele sobe na cadeira, encaixa seu pescoço na corda e fala que poderia suportar aquilo por até 20 segundos, se o público não fizer nada ele morre, se alguém fizer alguma coisa ele pode sobreviver. E este é o ponto mais provocativo da dramaturgia da obra.
Uma das habilidades mais interessantes do diretor Milo Rau, neste espetáculo, consiste na capacidade de criar várias camadas de narrativas que permitem discussões simultâneas sobre questões diferentes. Ao mesmo tempo em que fala sobre um caso verídico de homofobia e assassinato, fala também sobre a realidade do fazer teatro e a capacidade do artista cênico de “fingir” e contar histórias, representando até o inimaginável. Os atores interpretam a si mesmos em cena, aos personagens da história, ao mesmo tempo em que assumem funções de narradores de tudo o que vemos. Como é dito no início, o principal objetivo é estabelecer a comunicação entre o que deseja ser dito/contado e o público. Para além disso, o encenador expõe a própria fragilidade do teatro em lidar com a veracidade das cenas. Parece que se comover com as cenas projetadas no espetáculo é mais fácil, embora a artificialidade neste caso seja maior pela mediação da câmera. Milo Rau nos faz questionar o teatro, o cotidiano e o cruzamento dessas duas experiências de vida (e morte). Com uma dramaturgia muito concisa e uma direção sugestiva de imagens fortes e múltiplas (destaque para a entrada de um carro no palco e a simulação de uma noite chuvosa do assassinato de Ihsane Jardi), o espetáculo conduz bem o espectador ao raciocínio do encenador, mesmo que diante de um estilo de atuação mais frio, calcado no texto e em estratégias de simulação destacadas como tal. Se na história real a violência e brutalidade é forte e banalizada pela mídia, no teatro ela é tão falsa que parece perder sua capacidade de afetação, nos restando a racionalização sobre os fatos.
Se por um lado a obra lida muito bem com as questões da teatralidade e da realidade, questionando a função do teatro nesse novo engajamento político em que vivemos, por outro lado, ainda parece deixar passar algumas questões que considero fundamentais. A narrativa, em alguns momentos, cobra diretamente do espectador pela sua inércia diante dos fatos violentos, mas ainda não se debruça sobre a origem dessa violência por si só, o que nos faz sugerir uma realidade onde temos que aprender a “lidar” com isso, ao invés de extinguir do nosso projeto de humanidade. Precisamos passar a discutir sobre os antônimos vida e violência. Compreender a morte como parte da vida e não o oposto dela, para perceber a violência como a verdadeira oposição ao direito de viver. A violência precisa ser percebida como prática de legitimação de uma performance masculina tóxica que busca retirar traços de humanidade dos corpos masculinos desde sua infância. Ou seja, estamos diante de uma sociedade que vem cultivando a violência como parte do processo de aprendizagem de um indivíduo, enraizada nas atitudes, pensamentos e falas mais banais até as de mais extrema intolerância.