Por Heloísa Sousa
13/04/2019
Entro no Teatro Cacilda Becker, em São Paulo (SP). Palco vazio, apenas um linóleo preto no chão demarcando a área cênica. Ao fundo, uma imensa porta aberta que deve servir para a entrada de objetos cenográficos de grandes proporções. Através dessa porta vemos outro espaço e uma escada vermelha. Os refletores disponíveis nas varas iluminam todo o palco de modo homogêneo – luz geral. Sento. Plateia lotada. Estreia de “A Boba” do performer e coreógrafo Wagner Schwartz.
Pela configuração espacial é possível deduzir o tipo de obra que irá se desenrolar, a probabilidade de termos apenas o corpo do performer em cena, talvez silêncio, nenhum ou poucas mudanças de luz, e a construção de uma coreografia baseada apenas no encadeamento de movimentos mostrando um referencial comum da dança contemporânea, onde o corpo basta por si mesmo na experiência estética. E é exatamente isso que se apresenta. É um contraponto a obras que criam imagens que se transformam continuamente no palco sem hierarquias entre os elementos de cena, permitindo que formas, cores e outras materialidades sejam também enunciadoras de discursos, questões ou proposições.
Wagner Schwartz entra em cena, vestido com roupas comuns que parecem vir de seu próprio guarda-roupa, segurando a réplica do quadro “A Boba” da artista plástica brasileira Anita Malfatti. Durante 50 minutos, o artista apresenta alguns movimentos repetitivos onde parece tentar estabilizar a obra de arte no chão, ou ainda se defender com ela em gestos de ataque. Muitas vezes ficamos diante do verso branco do quadro, suas verticalidades e horizontalidades são exploradas, enquanto a possibilidade de contemplação do quadro é comprometida. Segurar o quadro, portá-lo de diversas maneiras e tentar torna-lo independente no espaço são ações que constroem a coreografia dessa obra. Com movimentos cotidianos e sem virtuosismos, Schwartz explora uma relação que parece ser muito mais com o quadro enquanto objeto, do que com a obra em si criada por Malfatti.
Saio do teatro inquieta. Em casa, passo alguns dias lendo o máximo de textos críticos que consigo sobre a estreia do espetáculo, leio também algumas entrevistas. Além de presenciar a análise feita pelo pesquisador Fábio Cypriano após a estreia da obra durante a 6ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.
Existem inúmeras leituras e sugestões de discussões a partir da obra. Talvez seja difícil ver “A Boba” dissociado das questões que envolvem as trajetórias tanto de Wagner Schwartz quanto da própria Anita Malfatti. Faz parte da pesquisa de Schwartz se debruçar sobre o trabalho de algumas artistas visuais para criar performances que envolvam corpo, espaço, tempo e movimento. Em 2017, o artista apresenta a obra “La Bête” no Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde o seu corpo disposto e despido em uma galeria se torna material de manipulação, aproximação e criação do público, relembrando a obra “O Bicho” de Lygia Clark. Nessa ocasião, uma mulher e sua filha criança, visitam e interagem com a obra. Um vídeo desse momento é filmado e viralizado na internet, em poucos dias, Wagner Schwartz tem sua obra completamente distorcida pelo perigoso moralismo brasileiro e é taxado de pedófilo em inúmeras páginas na internet. Sofrendo ameaças, perseguições e até sendo vítima de uma fake news que divulgava sua própria morte, Schwartz vive o pesadelo da censura somada a violência e permissividade que as mídias sociais dão a uma parcela da sociedade psicologicamente doente e cognitivamente limitada. No início do século XX, Anita Malfatti também passa por experiências de censura e críticas destrutivas quando tem seu trabalho diminuído pelas palavras de Monteiro Lobato, depreciando seu experimentalismo e suas referencias estéticas. Ambas as situações ressignificam e quase destroem artistas, sujeitos e obras.
Após esse episódio, Wagner Schwartz se reúne com outros artistas vítimas de censura e ataques no Brasil, como Elisabete Finger, Maikon K e Renata Carvalho, para criar o espetáculo “Domínio Público”. Dando continuidade a essa reflexão artística sobre as relações entre a obra de arte e o público, o artista chega até “A Boba”, onde observa as cores da bandeira brasileira nas pinceladas do quadro e também toda uma trajetória pessoal que cruza com a autora da pintura.
Me questiono sobre a necessidade de se recuperar todo um contexto e trajetória para ter pistas de leituras sobre uma obra de arte. Ao mesmo tempo em que reconheço que uma obra não está dissociada de tudo o que ocorre ao redor dela e para além das paredes de um espaço cultural para apresentações. No entanto, pensando na multiplicidade da plateia que deveria ser composta por pessoas de diversas classes, gêneros, raças e escolaridades, a restrição da percepção da obra aqueles que podem/devem pesquisar, saber ou compreender esses contextos pode parecer excludente. E se esse não é o caso do público, para quem estamos direcionando nossos espetáculos?
Na performance “A Boba”, Schwartz tenta evidenciar a instabilidade e funcionalidade da obra de arte, o descontrole da recepção, a subversão dos cânones e a materialidade daquilo que é trabalho nos processos artísticos. Retirando o quadro da sua sacralidade intocável comum aos museus, o artista parece reduzir a obra de Malfatti, tornando-a comum e manipulável. Profanação. Em contrapartida, o auto-retrato de Malfatti se reduz a uma simples bidimensionalidade e distancia o público de suas peculiaridades, evidenciando o corpo do performer – e seu trajeto – acima dela. Um homem branco segura um auto-retrato fake [réplica] distorcida [expressionista] de uma mulher, cuja história perde relevância nesse contexto. Hierarquia.
Apesar de todas as questões que rodeiam a obra, o processo criativo e a trajetória do artista, a performance não contempla as questões que se propõe a discutir, necessitando de certas afirmações verbais que construam o discurso da obra fora do palco. São articulados lugares previsíveis da dança contemporânea, desde a concepção visual até as escolhas dos movimentos e suas repetições. Além disso, todos os discursos e problematizações ressaltados em alguns textos e leituras sobre “A Boba” não parecem evidentes na própria obra em si, mas sim uma produção de pensamento articulada para além do que é apresentado em cena e que força uma leitura complexa a partir de escolhas estéticas comuns. A pesquisa de Wagner Schwartz tem uma relevância singular para a dança contemporânea brasileira, assim como os episódios de violência pelos quais ele passou revelam muito da mentalidade anticultural e antiartística que assola o nosso país. Mas, nesse sentido, “A Boba” carrega outra questão, até que ponto uma obra de arte pode comunicar por si só?