Por Quemuel Costa
27/12/2019
“Pode um ator nordestino representar um personagem nordestino?” é a questão apresentada pelo personagem Henrique logo no início de “A invenção do Nordeste”, a mais recente montagem do Grupo Carmin, dirigida pela integrante do grupo Quitéria Kelly. A pergunta é feita e o público ri, afinal, assim que a ouvimos, a pergunta parece um tanto ridícula. “É óbvio que um ator nordestino pode representar um personagem nordestino! ”, podem pensar alguns dos que riem; mas logo vemos que a coisa não é tão simples assim.
A história, assim como a questão apresentada, é em certo ponto muito simples – uma das melhores coisas da peça, pois apesar de tratar de um assunto muito abrangente e reconhecível a qualquer brasileiro, a abordagem parte de uma questão muito definida e particular, e isso poderia distanciar um público menos acostumado com o teatro e suas questões, o que não acontece com a obra (até mesmo porque muitas questões políticas e cotidianas são trazidas para a fala dos personagens). São dois atores norte-rio-grandenses que estão disputando um papel de um ator nordestino: para isso eles precisam passar por uma preparação de sete semanas com um diretor. Nessa preparação começa o questionamento a respeito de como seria esse personagem nordestino, de onde vem esse imaginário “nordestinês” e finalmente: o que seria esse nordestino e esse Nordeste? Quem os inventou?
De Euclides da Cunha a Padre Cícero, do Sudeste a Pernambuco, do cinema a literatura, tudo vira alvo na afiada e irônica montagem. Vemos, semana após semana (de forma muito brechtiana), os mitos nordestinos e mitos sobre o Nordeste serem questionados e desconstruídos. Vemos tudo isso sob o desenho de luz de Pedro Fiuza. Apesar de toda iluminação trazer isso em maior ou menor grau, a iluminação d’“A invenção do Nordeste” manipula e altera o que estamos vendo. Não é uma luz que tenta dar a ideia de um lugar, mas que coloca o que o público vê em um lugar distinto, às vezes distanciado e outras muito próximo (são também nossas questões as iluminadas na peça), até mesmo pela manipulação dela em cena pelos atores. É uma luz minuciosa e precisa que transforma tudo o que estamos vendo em argumento, em dramaturgia.
“A Invenção do Nordeste” estreou quatro anos depois de “Jacy” e é possível perceber semelhanças entre as duas obras, assim como alguns recursos que já demarcam bem uma identidade do grupo: as coreografias, o humor e o riso como um local de crítica e reflexão, além das características do teatro documental. Provavelmente por um maior aprofundamento e maturidade nas pesquisas do grupo, algumas das semelhanças entre “Jacy” e “A Invenção do Nordeste” parecem inclusive funcionar melhor nesta última, como as coreografias – aplausos em pé pela cena em vermelho com o remix do vídeo da discussão entre os então senadores Renan e Tasso. “Não aponte este dedo”. “Coronel, coronel” (Sim, a música fica na cabeça, se você já assistiu a peça deve entender bem o que falo).
Alguns recursos ganham finalidades diferentes nas duas montagens. Enquanto em “Jacy” as cenas com filmagens sendo transmitidas em tempo real no cenário têm um caráter mais poético e até mesmo triste, em “A invenção do Nordeste” essas cenas são mais cômicas e até mesmo sarcásticas. Vale lembrar que entre “Jacy” e “A Invenção do Nordeste”, o coletivo estreou “Por Que Paris?” em 2015, mas infelizmente não tive a oportunidade de assistir a essa obra.
Além disso, as duas obras do coletivo têm um caráter muito pessoal. Os processos partem de questões vivenciadas pelo grupo e as problemáticas e angústias são expostas em primeira pessoa. Isso se intensifica ainda mais n’“A invenção do Nordeste”, uma vez que os personagens têm os nomes dos atores (mas sem seus respectivos sobrenomes, atendendo apenas por Henrique, Mateus e Robson), o que pode inclusive gerar a leitura de que os atores interpretam a si mesmos. Sem dúvida, há um jogo com o fato de serem atores interpretando atores e um ator-diretor interpretando um diretor, afinal, se eu já estou em um local de muita proximidade com os personagens, e as questões apresentadas vão ser as minhas questões enquanto ator e nordestino, por que não levar isso ao extremo e fazer com que as fronteiras entre ator e personagem se mesclem? É uma questão de potencializar o discurso: sou eu em cena apontando o dedo para mim e para você. É o meu lugar e eu não vou assumir (ou representar) o lugar de outro para falar sobre isso.
Esse discurso é construído de forma muito inteligente, tanto pelo humor constante, mas também pela dialética causada pelas discussões e discordâncias entre os personagens. É um discurso que não esconde o choque de vermos que a região da qual tanto nos orgulhamos (#OrgulhoDeSerNordestino #NordesteÉMeuPaís) é na verdade uma invenção, algo forjado com base nos interesses de uma elite. É ver toda uma identidade virar pó na sua frente. Lembro que na primeira vez que assisti à peça em agosto do ano passado no Circuito Cultural Ribeira (saudades assistir peças de graça), saí desolado. É quase desesperador ver o quanto ser da região Nordeste nos limita. Teatro feito no Nordeste é sempre teatro nordestino e já se espera algo disso. Não vemos o mesmo acontecer com o teatro feito no Rio de Janeiro ou em São Paulo, né? Teatro carioca e paulistano é sempre teatro nacional ou simplesmente teatro. Muitas vezes não temos a liberdade de sermos apenas brasileiros ou apenas gente mesmo, o estereótipo vem sempre antes, isso quando não somos nós mesmos a reproduzir esses estereótipos e assumi-los com orgulho e afeição. “É pesado demais carregar uma região toda nas costas” diz Mateus já perto do fim da peça - e é mesmo. Pensar sobre isso também me faz imaginar como deve ser a recepção da peça no Sul e no Sudeste, ou até mesmo no nosso vizinho Pernambuco, pois todos recebem boas alfinetadas. Com certeza são fruições muito distintas.
Fica também a angústia de não saber o que fazer com essa “identidade nordestina” já tão entranhada na gente. Abandonamos e inventamos outra coisa? Utilizamos quando for necessário? Reinventamos? É complicado porque reinventar o Nordeste é também se reinventar, e para isso é primeiro se reconhecer como invenção. O pior: invenção dos outros. Saio do espetáculo e trago essas questões comigo para casa. Elas irão passar uns dias reinando na minha mente, e estão comigo desde que assisti à obra pela primeira vez.
Assisti “A invenção do Nordeste” pela segunda vez no FICA 2019 e saí com a impressão de estar gostando ainda mais da obra. Lembro de ter conversado com uns amigos que a assistiram comigo no ano passado e algumas coisas me incomodavam, (in)felizmente não me lembro mais quais eram. Não sei se as supostas questões foram resolvidas (pois volto à obra mais de um ano depois) ou se a minha percepção e fruição apenas mudaram. De qualquer forma, “A invenção do Nordeste” é uma obra extremamente necessária e potente. Que bom que tem circulado, alcançado reconhecimento e ganhado prêmios, pois é uma peça que precisa ser vista.