Por Euler Lopes
28/12/2019
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Cena 0. Entro no teatro. Vou sentando devagar, enquanto com uma mão seguro o livro admirável mundo novo, e com a outra vou abaixando o assento. No palco existe uma atmosfera que tento decifrar com o pouco de informação que tenho sobre o espetáculo. O cenário predominantemente verde é composto por cinco portas vazadas, bancos, um rádio antigo, uma caixa térmica, alguns figurinos pendurados no fundo do palco. Talvez por conta da própria estrutura do teatro, com suas paredes de pedras, a composição do ambiente me remete ao espaço de uma fábrica. A alusão me faz lembrar ao incêndio na fábrica têxtil da Triangle Shirtwaist em Nova York, grande desastre industrial - ou chacina? - que causou a morte de mais de uma centena de mulheres e que fez com que se criassem o dia internacional da mulher.
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Pós-espetáculo. Sou do tipo de gente que precisa de uma cerveja após assistir uma apresentação teatral. Acontece que se o teatro é encontro, assim que a peça finda eu preciso de um copo de cerveja na mão para ir repassando tudo que vi. Múcia Teixeira, uma grande mulher daqui de Natal que acabo de conhecer, nos leva para o Bardallos, e lá o brega corre solto. O show parece extensão da peça, já que as atrizes cantam durante todo o espetáculo esse tipo de música. Do lado de fora, vendo todos dançando dentro do Bardallos, penso: E se um homem em uma moto – ou carro – com uma arma na mão passasse agora e desse cinco disparos, quais vidas e suas memórias importariam no dia seguinte? A biopolítica é isso, a vida enquanto moeda de troca determina quais são descartáveis e quais não.
Fotografia 02
O mote do espetáculo é uma chacina que ocasionou a morte de 5 mulheres na cidade de Itajá, e que acabou não repercutindo tanto como a Operação Galo de Combate que apreendeu e sacrificou mais de 146 galos de rinha na mesma época. Independente da promoção midiática dos dois casos, o que há em comum entre eles? A presença da violência. Violência que é justificada e/ou aceita quando praticada contra animais e/ou determinados grupos sociais como as mulheres. Podemos até questionar a comparação, mas tanto a vida dos galos quanto a vidas das mulheres acabam não importando e tendo a devida atenção de diversos setores da sociedade. Banalizamos e comercializamos a violência nossa de cada dia. Ela vende.
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A iluminação do espetáculo é linda.
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As quatro atrizes assim que entram no espaço cênico trazem uma contribuição imagética muito importante. Os quatro corpos em cena são diversos, as vozes tem texturas completamente diferentes. Colocar em cena corpos múltiplos é uma grande mensagem. Quando uma tragédia como uma chacina acontece, a individualidade de cada ser acaba sendo anulada. Os corpos são quantificados e a vida, aquela que foi vivida, não importa mais. Os quatro corpos em cena nos apontam uma ausência – o quinto corpo. E essa ausência, assim como as ausências das mulheres que são violentamente assassinadas é um silêncio incômodo.
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A iluminação do espetáculo é linda, já disse isso?
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O ensaio. Com os textos nas mãos, sentadas em roda as atrizes leem a cena do espetáculo. Trata-se da cena que remete aos minutos antes do assassinato delas. De imediato, penso que a cena vai se distanciando de mim à medida que se desenrola. Porque se eu trago o íntimo de um processo de montagem para o palco, eu não o aproximo do público? A cena da leitura continua íntima para as atrizes, mas pouco nos atinge. Quando a cena não quebra a parede, o público fica com vontade de quebrar.
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A trilha sonora. Inicialmente, o uso de músicas populares que são cantadas pelas atrizes é uma tática interessante, mas, de alguma forma parece que esse recurso acaba se esgotando com tanta cantoria. A música é um signo usado para ambientar o local onde a chacina aconteceu – teoricamente, numa casa onde essas mulheres se prostituíam. As músicas populares deveriam contagiar mais o público, esse momento de cumplicidade entre atrizes e público parece não acontecer. Se houvesse a cumplicidade, a ideia de que aquelas mulheres foram mortas de forma brutal, em seu cotidiano, nos atingiria com mais força.
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A performance. Há uma cena em que as atrizes descem do palco e colocam espelhos na altura do rosto para que reflitam a imagem dos espectadores. Esse recurso já utilizado em diversas performances artísticas é de uma potência muito grande ao projetar para o corpo do ator – no caso, atriz - o outro que não está em jogo. O espectador nessa hora é levado a pensar, podia ser eu.
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O Figurino. Se por um lado todo o figurino do espetáculo Mulheres Invisíveis construído por João Marcelino é muito simples, as peças ganham destaque ao serem expostas como que em vitrines que revelam a fragmentação da narrativa. Não temos inteireza sobre a história dessas mulheres, nem mesmo sobre o que de fato aconteceu com elas. São apenas pedaços, peças incompletas sobre o caso. A disposição das peças uma ao lado da outra tem o mesmo efeito da mostra “A Culpa é minha?” que aconteceu em Bruxelas e expôs as roupas que vítimas de estupro usavam quando o crime aconteceu. O figurino exposto, com a ausência dos corpos, causa a mesma sensação, a de que houve um crime e a roupa é o pouco vestígio que resta.
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A repetição. Deleuze afirma que se você contar a mesma história pela segunda vez, por mais que não altere nada do que é contado e a reproduza fielmente como na primeira, será sempre uma segunda história. O recurso utilizado da repetição nos mostra isso ao replicar a mesma cena – a de instantes antes da chegada do criminoso que assassinaria as cinco mulheres – com pequenas diferenças. A repetição reproduz a necessidade de capturar o instante fugaz anterior ao crime. Esse recurso, embora muito criativo, tanto na dramaturgia como na encenação, em Mulheres Invisíveis parece se esgotar.
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A iluminação do espetáculo feita por Ronaldo Costa é linda. O uso preciso da luz que trabalha em alguns momentos com penumbras, revelando apenas as partes do corpo, principalmente os rostos de quem conta a história é de uma precisão e criatividade muito interessantes. A cena da iluminação de cabaré nas portas, o colorido dado enquanto as atrizes dançam é um dos meus momentos preferidos.
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Dramaturgia. Utilizando do efeito da repetição, a dramaturgia textual de César Ferrario acaba tendo um efeito cíclico que se por um lado nos força a refletir a todo instante sobre a iminência do crime ocorrido, por outro, corre o risco de cansar o espectador. O jogo dramatúrgico estabelecido de aproximar as atrizes, ao fazer com que elas contribuam com suas opiniões, seus medos e creio eu, suas vivências, embora muito poético se perde na atuação por não parecer de fato, genuíno. A cena da descrição do crime é de uma força poética e de um ritmo cênico impressionantes, se esse ritmo se estabelecesse durante todo o espetáculo, acredito que a obra teatral cresceria ainda mais.
Fotografia 15
A invisibilidade. Há um debate dentro de Mulheres Invisíveis sobre se não foi dada a devida importância ao caso por tratar-se de prostitutas. Em algum momento, se cogita que não são prostitutas e sim lésbicas. Entre prostitutas e lésbicas há algo em comum, ambas são invisíveis até mesmo dentro das lutas que enfrentam. O movimento pela profissionalização das prostitutas e a luta contra a invisibilidade lésbica dentro do movimento LGBTQmais são conhecidos, e deixar em aberto sobre se essas mulheres são lésbicas ou prostitutas é um bom ponto de reflexão. Aliás, independente sobre de que mulheres se tratam, ainda somos um dos países que mais mata mulheres no mundo.
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A cenografia. O cenário de João Marcelino e o grupo é bastante funcional. As portas que remetem a portais, ao batente onde as prostitutas expõem seus corpos, as vitrines de lojas, conseguem dar um dinamismo ao espetáculo e ser muito prático, o que movimenta o olhar do espectador.
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As atuações. Em muitos momentos, sinto que as atrizes também se confundem com a estrutura fragmentada do espetáculo, a necessidade de dar veracidade aos depoimentos perde em convicção. Os corpos em diversas cenas parecem desconfortáveis, principalmente quando bailam juntos. O toque no corpo do outro é algo que no palco deve sempre ser poético, e não desajeitado. Entretanto, destaco a cena da vizinha interpretada por Dinha Vitor como um dos momentos de maior afeto.
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As ausências. A maneira como o espetáculo lida com as ausências se dá de duas formas instigantes. A primeira, ao assumir a ausência de um quinto ator-atriz e trabalhar dentro desse abandono tão comum a quem enfrenta um processo de montagem é de uma honestidade e verdade que dialogam principalmente com quem faz teatro. A segunda, a presença por meio de um dispositivo digital da imagem de uma atriz que está presente o tempo inteiro do espetáculo via transmissão online, pode até mesmo passar despercebido por alguns e talvez a sua “presença” não se justifique.
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A direção. Jefferson Fernandes e Lenilton Teixeira são extremamente criativos, o excesso de criatividade faz com que não haja uma seleção e um recorte de ideias. Tudo posto ao mesmo tempo e agora corre o risco de não comunicar tudo que uma história como a da chacina de Itajá precise dialogar. Outro ponto é que um crime bárbaro é de um apelo emotivo muito forte, não sei se o tratamento frio dado ao espetáculo seja a melhor solução. Acredito que há muito esforço empreendido na encenação e que o mesmo deva se estender ao trabalho com o elenco.
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Você sabe a história da pomba gira? Eu não sei muito bem, mas vou contar. As pombas giras são espíritos de mulheres que foram violentadas e injustiçadas e que voltam com o intuito de vingar ou reclamar a sua morte. Mulheres Invisíveis me lembrou das pombas giras, pois, o espírito dessas cinco mulheres seguem pairando em busca de justiça, respostas e mudanças. Coisas que a arte denuncia, mas só a pressão popular e a luta podem solucionar.