Por Euler Lopes
29/12/2019
Shantay, you stay. A Mulher Monstro, da S.E.M. Cia. de Teatro, apresentada na segunda sessão do sábado dentro da programação do FICA Natal 2019 nos arrebata de tal forma que findo o espetáculo parece que fomos postos diante da nossa própria miséria. Para José Gil (2006) em seu texto Monstros, essa categoria tem exatamente a função de inquietar e provocar vertigens que abalam permanentemente as nossas mais sólidas certezas. Acontece que o monstro é aquele que se revela em sua natureza, completamente livre das máscaras e limites sociais, ele traz à tona o que há de mais obscuro da condição humana. Caio Fernando Abreu, escritor da literatura contemporânea brasileira que inspirou o texto da montagem, tem uma frase enigmática da qual gosto muito que diz bem assim “E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê”. A monstra interpretada por José Neto Barbosa nos revela que estamos todos no fundo mais fundo do poço, uma nação inteira tentando descobrir desde as últimas eleições como fomos parar aí.
Reading is fundamental. Eu mesmo só acredito no ator que lê. A influência de Caio Fernando Abreu dentro da obra não é apenas por sua contribuição com o texto "Creme de Alface" que estrutura muito bem a narrativa, e que ainda conta com uma coletânea de assombrosos depoimentos reais. O fluxo de pensamento característico do escritor, um fluxo poeticamente verborrágico e polifônico também acaba contagiando o espetáculo, que surpreende pela enxurrada de coisas bem ditas num ritmo acelerado. Caio sofreu bastante para se firmar como escritor, inclusive no período da ditadura militar, e é incrível perceber que sua escrita é de uma atualidade espantosa. A junção de um excelente texto com uma atuação primorosa, com um perfeito tempo dramático é de um arrebatamento encantador. O CUNT: Charisma, Uniqueness, Nerve and Talent do José Neto Barbosa está aprovadíssimo.
Choices. Ao entrar no teatro, somos avisados por meio de uma placa de “perigo” o que vamos enfrentar. No palco, dentro de uma jaula, completamente amarrado está o ator com as vestimentas de monstro. A imagem que se revela é de que estamos prestes a assistir a transformação de Monga, quadro popular dos circos. Numa gravação extremamente debochada, ouvimos que nós podemos escolher desistir, mas já é tarde. A monstra nos fascina desde o primeiro instante, e segue fazendo isso quando retira sua máscara e nos primeiros minutos extremamente cômicos em que nada fala, mas já consegue nos situar sobre a natureza do espetáculo ao lançar dois fortes símbolos da direita conservadora brasileira, a arminha com a mão e o bater das panelas.
We're all born naked. And the rest is drag. A arte drag tem se popularizado nos últimos anos principalmente com a circulação mundial do programa Ru Paul's Drag Race que tem um apelo muito forte no Brasil. Se impulsionados pelo programa ou não, as drags tem ocupado diversos espaços e reclamado para si também o espaço artístico, cujo reconhecimento muitas vezes lhes é negado. Essa persona de um determinado artista que brinca com as fronteiras do gênero permite criar um outro lugar de identificação. A escolha por representar uma drag é extremamente inteligente por problematizar a categoria da personagem. Se por um lado, pensamos que trata-se da caricatura de uma pessoa, por outro, ela é tão próxima a nós que a todo momento tememos que o riso denuncie alguma semelhança com o monstro. O que infelizmente acontece em diversos momentos, nos quais o público chega a rir de piadas gordofóbicas, de estereótipos construídos e mantidos em nossos discursos e de situações de extrema violência relatadas ao longo do espetáculo. A interação com a plateia é um dos pontos mais altos do espetáculo, ela se dá de forma contínua e sem prejudicar o andamento da encenação, numa mensagem sutil de que há semelhanças entre a monstra e nós.
Hey kitty girl, a monstra nos revela que é apenas uma grade que nos separa dela. E nos interroga até que ponto nessa polarização atual em que vivemos, o outro é de fato, diferente de nós. O símbolo da grade é de uma potência esmagadora. O longo silêncio dado em cena para que miremos o seu confinamento é constrangedor por nos interrogar sobre a desumanização que colocamos determinados grupos e pessoas. Aliás, vocês fizeram a experiência de sair do espetáculo e se deparar com outras grades? Não precisei andar muito para na vida real encontrar grades delimitando espaços e opondo gentes. O mais estarrecedor é pensar que nem sempre do outro lado da fronteira há um monstro.
Not today, Satan, not today. A monstra é a típica burguesa branca, recatada, neopentecostal e do lar. Os absurdos proferidos por ela vão em todas as direções sem poupar classes, etnias, orientações sexuais e de gênero, a família, os vizinhos, os desconhecidos. É tanto ódio proferido que consegue juntar todas as bizarras afirmações que têm sido – contra à vontade de muitos, é preciso dizer – naturalizadas nos últimos anos. Se é preciso coragem para erguer um espetáculo, é preciso coragem dobrada para manter vivo uma obra extremamente atual que faz críticas tão diretas ao presente governo e denuncia a situação de polarização que estamos vivendo desde 2016. A forma como a encenação resolve os diversos discursos-facetas dessa mulher é de muita inteligência, com a delimitação da luz, vemos várias nuances da mesma persona que acompanhada dos efeitos sonoros produzidos pelo próprio ator, possibilita visualizar as feras e diabos que existem nela. Além de nos remeter às telas de celular onde cada um despeja suas verdades como certezas incontestadas.
If you can't love yourself, how in the hell you gonna love somebody else? Embora trate-se de uma monstra, o espetáculo é de uma profunda sensibilidade ao humanizá-la. Desde o começo temos flashs dos motivos da sua monstrificação, sendo o maior deles a própria solidão, essa coisa (contemporânea?) que dilacera a todos. A mensagem é de que se não conseguimos nos amar, atiraremos ódio para todo lado. Outro ponto muito interessante é perceber como essa monstra vai sendo despida gradativamente ao tirar sua máscara e manter as pernas, numa alusão ao minotauro preso em seu labirinto, no caso, jaula. Em seguida, ao livrar-se de suas máscaras e vestimentas e revelar o ator que consegue carregar todo o peso e as consequências de um trabalho como esse num país extremamente intolerante como o nosso, nos faz perceber que o monstro não está distante de nós, talvez esteja dentro de nós.
A Mulher Monstro é um espetáculo urgente que precisa ser visto por tanta gente que eu gostaria que ele se apresentasse em todas as cidades, em todas as comunidades, e para todos os olhares, e só me resta desejar que haja força e coragem para a equipe continuar seguindo. Can I get an Amen?