Por Quemuel Costa
29/12/2019
O primeiro contato que tive com a obra "Provisório" e com o Grupo Interferências de Teatro foi assistindo a cena curta que deu origem ao espetáculo, no Teatro Laboratório Jesiel Figueiredo - Departamento de Artes (UFRN). A cena curta marcou a estreia do grupo, que é formado integralmente por estudantes do curso de Licenciatura em Teatro desta universidade. Lembro que gostei muito da cena, saí bastante tocado com ela e impressionado com a performance dos atores. Voltei a encontrar com a obra somente alguns meses depois, quando em sua semana de estreia no Espaço A3, pude assisti-la completa.
Começo citando a cena curta não apenas porque foi dela que a peça surgiu, mas porque foi assistindo a ambas que cheguei as reflexões e conclusões que irei expor aqui. Se ao assistir a cena de pouco mais de vinte minutos saí encantado com o que vi, o mesmo não aconteceu ao assistir por uma hora a comovente história de Jacira, que cuida da sua irmã Ceiça, uma senhora de idade que por ter sérios problemas mentais, toma vários remédios. A relação entre as duas está cada vez mais desgastada, a ponto de Jacira se perguntar se não é melhor internar a irmã, ideia apoiada pelo cunhado das duas, João. Fiquei com a sensação da dramaturgia não explorar todo o potencial da narrativa. Ressalto também que talvez essa minha impressão tenha sido por não ter visto as questões que já tinha visto na cena curta serem aprofundadas e dissecadas no espetáculo. Como eu já conhecia os personagens e seus dilemas, fiquei esperando por outras camadas. Talvez a fruição do espetáculo tivesse sido diferente se eu tivesse assistido somente ele.
Assim como a dramaturgia, a direção, principalmente por optar por um naturalismo que não parece ser a melhor opção pro espetáculo, diminui as possibilidades desse. O naturalismo e a quarta parede em alguns momentos impedem que o público compre a ideia que está sendo vendida. Apesar do jogo em várias cenas ser muito latente, (talvez) por falta de uma triangulação, ele fica somente entre os atores. Me pergunto ainda se o naturalismo da encenação faz sentido quando o tempo todo estamos vendo três atores jovens interpretando idosos, dois deles interpretando mulheres. Inclusive um dos pontos altos do espetáculo é a atuação de Allyerly Dantas, Rubinho Rodrigues e Tom Gomes, que dão vida a história das irmãs que apesar de se amarem, já não fazem mais tão bem uma a outra e nem tem condições mentais de se cuidarem. É bonito ver principalmente o quanto a construção dos personagens está sólida: em alguns momentos é possível perceber que os atores estão improvisando, mas nem assim perdemos as personagens de vista.
Assisti a cena curta e a peça completa em espaços diferentes, o que também colaborou para fruições muito distintas. Apesar do “teatrinho” do DEART e do Espaço A3 não serem os espaços teatrais ideais, há diferenças essenciais entre os dois que influenciam a vivência dos espetáculos apresentados neles. É quase impossível depois de subir as escadas do Espaço A3 — onde assisti o "Provisório" completo, não refletir sobre os locais disponíveis para os artistas da cidade. Mesmo sendo um local onde muita coisa boa já surgiu (e continua surgindo), está longe de ser o local adequado: há poucos ventiladores para dar conta de uma cidade quente como Natal e o público muitas vezes não vai ter uma cadeira para sentar, tendo que ficar em almofadas no chão ou bancos sem encosto para as costas, o que pode ser frescura para alguns mas pode atrapalhar o espetáculo de outros e inclusive evitar que o público retorne ao local.
A discussão sobre os espaços que ficam para arte e principalmente para o teatro em Natal pode se estender muito, e não é exatamente o que quero trazer para a crítica. Mas sim, como o trabalho de estreia do Grupo Interferências de Teatro é sintomático quanto à infeliz precariedade que estão submetidos os artistas da cidade — aliás, do país. Certa precariedade nos figurinos, no cenário, na luz (com refletores pendurados que parecem a ponto de cair e os fios da iluminação quase todos à vista) e no espaço. Mesmo com todo o cuidado e refinamento que o grupo visivelmente traz, fica claro ao assistir o espetáculo que ele não foi construído nas melhores condições. Da mesma forma que Jacira continua tomando conta da irmã doente porque a ama demais e não vê outra opção, o grupo faz teatro nestas condições porque também não há outra opção. É o jeito. Há um amor pelo teatro que não permite que se deixe de fazê-lo apenas porque não há as condições e nem o espaço ideal, assim como quem vai assisti-los em sua maioria também vai porque ama ver teatro. Ao mesmo tempo em que isso limita as potências e o alcance do espetáculo e do grupo, também faz com que esse surja com uma força e resistência extremamente necessárias ao fazer teatral neste país.
Outros pontos que dizem respeito a formação e configuração do grupo também trazem força e potência para o trabalho, como a direção de Thayanne Percilla. É mais uma mulher ocupando o espaço de encenadora na cidade, o que vem acontecendo com mais frequência nos últimos anos e rendendo alguns dos trabalhos mais significativos de Natal. Outra característica é o fato do grupo não ter se unido com nenhum artista (ou mais especificamente, encenador(a) mais consolidado da cena potiguar, como foi o caso de dois grupos também formados por alunos da UFRN, sendo eles, "Romeu e Julieta" do Grupo Asavessa com direção de Paula Queiroz e "Sem Choro, Nem Vela" do Grupo Avante com direção de George Holanda. Os atores convidados, a diretora e os demais integrantes do grupo têm todos uma formação muito similar.
Apesar do espetáculo ter alguns problemas, não deixa de ser revigorante ver novos artistas ocupando a cena, além de ser extremamente bonito e feliz ver um novo grupo surgir, ainda mais com um trabalho tão sensível e tocando em temas tão relevantes quando família, cuidado, amor e transtornos mentais. Desejo vida longa ao Interferências e que colham bons frutos do "Provisório", assim como espero também ver novos trabalhos do grupo.