A Efemeridade do Teatro: A Crítica é Provisória [Recepção 02]

Por Quemuel Costa
29/12/2019

Estou no ônibus e quase certo que não chego a tempo, aviso a Heloísa dessa possibilidade de perder a peça e ela diz que ainda tem gente entrando, quem sabe se eu correr consigo. Faço isso. Desço na parada e saio correndo até a Casa da Ribeira, paro apenas para recobrar o ar e tentar aplicar todas as técnicas de respiração que já me ensinaram no teatro. Subo as escadas o mais rápido possível e percebo (escuto) que o espetáculo acabou de começar, consigo entrar. Assim que entro na Sala de Arte Contemporânea da Casa da Ribeira, onde o "Provisório" está sendo apresentado, percebo uma diferença crucial no que vejo: a sala tem paredes brancas e uma iluminação boa, o que gera uma imagem muito distinta e mais agradável do que a que vista no Espaço A3, onde as paredes pretas e a iluminação não muito eficaz deixavam o espetáculo todo com uma penumbra constante.

Ao sentar na última fileira percebo as pessoas do meu lado se mexendo nas cadeiras e se esticando pra conseguir ver melhor. A sala não tem elevação gradual das cadeiras, o público fica todo no mesmo nível e isso faz com que em alguns momentos vejamos mais a sombra da cabeça de quem está na nossa frente do que a cena. Me pergunto se novamente o espaço será uma questão para mim. Sem dúvidas foi um incômodo ter que ficar me esticando o tempo todo para conseguir ver o espetáculo e em algum grau atrapalhou a experiência, mas nem isso conseguiu diminuir a qualidade da peça. Já temos aqui algumas diferenças entre essa experiência e a primeira vez que assisti o "Provisório", em junho deste ano.

Há uma crítica aqui no site sobre essa primeira vez. Nela pontuo as questões que me incomodaram no espetáculo e não me propiciaram uma fruição tão positiva (inclusive recomendo que você a leia e volte aqui ou o contrário: leia aqui e vá lá). Ontem ao terminar o "Provisório" fiquei pensando que talvez a crítica tenha prazo de validade: já não concordo com algumas coisas que escrevi ali. É claro que aqueles incômodos e problemáticas estavam lá quando assisti e escrevi; aquela crítica condiz com o espetáculo que assisti em junho. Mas agora tive uma experiência totalmente diferente. E isso se deve às particularidades do fenômeno teatral: assim como o teatro é efêmero, as coisas que surgem a partir dele – incluindo a fruição e a crítica – são efêmeras também. A crítica é provisória.

Uma das principais diferenças entre as duas fruições é que agora a dramaturgia contribui mais para a história de Jacira, Ceiça e João. Se antes eu ficava com a sensação da narrativa não explorar o potencial do drama das duas irmãs cuja convivência ficou impossível, dessa vez senti que ela nos guia de forma muito melhor pela história, nos mostrando nuances e camadas. A dramaturgia e a direção de Thayanne Percilla nos faz transitar entre o humor e o drama, o que pode ser um perigo em alguns momentos mas na maior parte do tempo funciona muito bem. Foi interessante perceber as risadas do público nos momentos (de alívio?) cômico, assim como o silêncio nas cenas mais tensas ou tristes. Inclusive não lembro de ter visto essa variação na apresentação do Espaço A3, não sei se as “piadas” não funcionaram no dia ou se o público era mais “frio”, mas ontem foi diferente. Ponto para plateia, ponto para o espetáculo.

Já perto do final da peça, assim como as constantes reclamações e acusações de Ceiça, a dramaturgia parece começar a ficar um pouco repetitiva, mas não chega a cansar. Os atores não deixam a bola cair. São eles também os responsáveis pelas ótimas transições de energia e de humor do espetáculo. Allyerly Dantas, Rubinho Rodrigues e Tom Gomes entregam um excelente trabalho corporal e vocal, principalmente Tom, que dá vida a Ceiça. São três jovens atores interpretando idosos (Allyerly Dantas e Tom Gomes interpretam idosas!) de forma convincente e muito sensível e sem cair em estereótipos. Os atores continuam sem interagir com o público, há uma quarta parede. Continuo a me perguntar se essa é realmente a melhor opção para o espetáculo, principalmente pela proximidade com o público nas duas vezes que assisti. A quarta parede nos dá a sensação de distanciamento, como se estivéssemos entrando sem convite na privacidade da casa de Jacira, olhando por uma fresta na porta, enquanto a proximidade inevitável entre a peça e a plateia me faz acreditar que estou dentro da casa participando de tudo.

Se na outra crítica já elogiava a força e a resistência do trabalho do grupo, agora minha admiração só cresceu. Diferente da primeira vez onde saí quase frustrado por não ter gostado tanto do espetáculo completo como havia gostado da cena curta, dessa vez saio muito feliz com a obra e com o grupo. É evidente a maturidade e inteligência que o grupo teve ao conseguir elevar a obra ao ponto de proporcionar uma fruição tão distinta e positiva alguns meses depois do primeiro contato. Não sei pontuar exatamente se essa melhora se deve à energia e ao trabalho do elenco, às mudanças na direção/dramaturgia e no espaço, ao tempo ou à quantidade de apresentações (provavelmente é resultado do conjunto). O fato é que "Provisório" mostra um coletivo mais maduro e mais habituado ao fazer teatral. O Grupo Interferências de Teatro entrega uma obra madura, tocante e extremamente sensível.

 

 

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