Por Heloísa Sousa
30/12/2019
Escrever sobre o espetáculo “Provisório” me vem como uma tarefa difícil, seja pela delicadeza do tema, pelas sutilezas da encenação, pelas escolhas estéticas na contramão das formas contemporâneas que o teatro vem assumindo, pela entrega no trabalho dos atores ou ainda pela abordagem dramatúrgica que expõe uma situação em suas fragilidades sem a necessidade de construir desfechos convencionais.
A obra compõe o repertório do Grupo Interferências de Teatro que se caracteriza pela sua jovialidade e pelo desejo de alunos do curso de Licenciatura em Teatro da UFRN de se manterem na prática teatral. Imaginando quantos grupos brasileiros não surgiram com essa mesma história, após a consolidação de cursos de graduação em Teatro nas universidades públicas, e se mantiveram neste percurso influenciando na história do teatro brasileiro contemporâneo; o surgimento do Interferências e a qualidade demonstrada em seus trabalhos nos faz acender uma esperança de continuidade e renovação do cenário natalense.
O espetáculo dirigido e escrito por Thayanne Percilla mostra Jacira, Ceiça e João em um momento na cozinha de casa. Ceiça é uma idosa com dificuldade de locomoção, que precisa tomar certos medicamentos e que apresenta algum tipo de deficiência mental que a impede de ter comportamentos e raciocínios tido como normais, como tomar banho, auxiliar na organização da casa ou evitar falas constrangedoras e que possam ofender os demais. Jacira, irmã de Ceiça, apesar de também já ter uma idade avançada e alguns problemas de saúde, faz o possível para cuidar da casa e da irmã, enquanto também sofre pela ausência dos filhos que não a visitam mais. Enquanto isso, João, cunhado das duas irmãs, aparece todos os dias para deixar o pão e se envolve também nos dilemas apresentados.
As personagens interpretadas pelos atores Allyerly Dantas, Tom Gomes e Rubinho Rodrigues aparecem na peça através de um trabalho de direção de atores muito minucioso, as partituras corporais e vocais construídas pelo elenco e sua sustentação física durante toda a encenação nos traz figuras muito distintas das aparências e personalidades dos atores, mas que não se deixam cair em estereótipos ou formatos ridicularizados do feminino, da velhice ou da loucura. Tom Gomes, que interpreta Ceiça, assume um triplo desafio de interpretar uma mulher idosa com problemas mentais e de locomoção, mas sua alta sensibilidade como ator o permite construir uma figura extremamente empática e ponto de problematização de si mesma e dos outros que a rodeiam. A escolha de fazer uma encenação realista, com objetos cotidianos, figurinos detalhistas e uma dramaturgia quase aristotélica é arriscada se pensarmos nas possibilidades emergentes de fragmentação e sobreposição das obras teatrais contemporâneas, mas, ao mesmo tempo, essa escolha permite uma melhor exploração das discussões que o texto traz e também só se torna possível através do trabalho do elenco que estabelece um jogo muito consistente entre eles e o público.
Se por um lado, a escolha por fazer um teatro realista pode soar anacrônico, alguns detalhes cênicos parecem pontuar a obra na nossa atualidade estética. Os atores são todos homens e jovens, interpretando pessoas idosas, onde duas das personagens são mulheres; a escolha por não fazer maquiagens de envelhecimento no rosto, apenas nos cabelos e sobrancelhas, permite uma maior maleabilidade na transição das figuras em cena, assim como exige mais do elenco e o permite construir a velhice a partir das imagens corporais e da voz.
A discussão que “Provisório” traz é fundamental e frequentemente marginalizada. Em uma sociedade que cultua o corpo e os discursos de jovialidade, envelhecer é um erro e uma etapa da vida que acaba não merecendo atenção ou cuidado, sendo vista apenas como caminho para a morte. A existência humana é objetificada, e se o corpo não cabe mais no sistema de produção capitalista ele precisa ser descartado, isolado e substituído. A pesquisadora Joice Berth fala sobre etarismo como “mais uma faceta da alma preconceituosa do ser humano que acredita que a idade torna as pessoas inúteis e se manifesta pelo pavor de envelhecer, [...] o desprezo pelo processo natural do corpo”. Jacira, Ceiça e João acabam interagindo em uma cozinha, marcados pelo abandono de filhos, pelo sentimento de solidão, do tempo que passou e levou as boas vivências consigo, pelo peso de ter que lidar com suas próprias velhices sem o amparo devido e levando-os a exaustão. Ceiça concentra em si a velhice e a doença, ao mesmo tempo em que suas atitudes carregam um nível de sinceridade que transitam entre a urgência e a ofensa. João, que assume a função da figura apaziguadora, que parece estar sempre por perto, é aquele que sugere a ação mais problemática, de Jacira internar Ceiça para amenizar seu fardo e sofrimento.
“Provisório” fala não somente sobre efemeridade, mas também sobre abandonos, sobre a liquidez dos afetos e os distanciamentos dos corpos. Como ainda lidamos de modo funcional com a existência humana e com as nossas relações. Inevitável não lembrar dos nossos avôs e avós, ou parentes, amigos que alcançam a velhice e que mudam. Mudam corporalmente, mudam como pessoas, mudam suas relações, mas que ainda são existências potentes e redes de afeto. E não é esse o destino de todos nós? Não é nessa impermanência que nos fazemos? Não somos todos provisórios?
Fico incomodada com a necessidade constante do público de encontrar brechas para o riso frouxo, sem refletir sobre o que estão rindo, sem compreender que a risada sobre uma situação fictícia revela certas posturas sobre a realidade. A dramaturgia não busca gerar nenhum tipo de comicidade, a construção das personagens é genuína e revela situações com certa crueza. A risada do público é reflexo da nossa discriminação e de como desprezamos outros corpos que não operam na mesma lógica que a nossa, eles são motivos de riso.
O espetáculo é uma obra que carrega muita simplicidade, seja pelo tempo de experiência do grupo, pela precariedade financeira que se reflete nos elementos cênicos ou pela dramaturgia autoral de uma artista que tem se empenhado em crescer nesta área. Mas, é a potência latente que se revela no trabalho e a seriedade com que abordam a obra que marcam a qualidade e necessidade da atuação de todos esses artistas.