Por Heloísa Sousa
30/12/2019
Sou professora de uma escola pública. Muitas vezes encontro alunas e alunos que foram privados de contextos de diálogos, afetos e oportunidades. Aprendem, desde muito cedo, a linguagem da violência e marginalizados constroem suas individualidades em situações desumanas. A realidade que vivem fora e dentro das escolas prejudica seu desenvolvimento físico e cognitivo. A dificuldade em lidar com adultos, em compreender as dimensões de passado, presente e futuro, e em despertar interesse pela aprendizagem, geram situações de tensão e distanciamento entre professora e estudante. Diante de muitas tentativas diferentes de elaborar atividades, em sala de aula, que pudessem auxiliá-los na compreensão de algo, acabo trazendo uma tarefa simplista de colorir um desenho, que abordava um conhecimento que não correspondia ao grau de instrução em que as crianças deveriam estar. Crianças entre 09 e 11 anos de idade. Me sentindo como se estivesse burlando a minha profissão e corroborando com um sistema que as impede de aprender, me deparo com crianças mais calmas, interessadas e empenhadas nas atividades, mesmo que algumas não conseguissem distinguir as cores de alguns lápis. No fim da aula, elas chegavam até mim, devolviam a atividade, não me olhavam nos olhos, não falavam nenhuma palavra que exprimisse carinho ou gratidão, com o corpo meio de lado, elas, uma a uma, me abraçaram.
Penso que o abraço possa ser, também, uma expressão de reconhecimento da capacidade de compartilhar e de ser empático ao outro. Abraçar pode querer dizer presença. Não apenas um “gosto de você”, mas um “estamos aqui, entrelaçados”.
Em Abrazo, o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, cria uma adaptação de “O Livro dos Abraços” de Eduardo Galeano, escritor uruguaio que se debruçou sobre as histórias e políticas da América Latina. A obra teatral do grupo potiguar é parte de uma Trilogia Latino-Americana, composta ainda pelos espetáculos Dois Amores y um Bicho e Nuestra Senhora de las Nuvens.
Duas atrizes e um ator em cena, se revezam na interpretação de diversas personagens que vivem em um local onde abraçar (e outras coisas) é proibido. Há uma fiscalização das expressões de afetos alheios enquanto o desejo de brincar, de se apaixonar, de viajar, de conhecer parecem pulsar nos corpos dos adultos-crianças. Praticamente sem falas, a encenação se constrói imageticamente e acaba por discutir questões políticas bastante complexas. Marco França, diretor do espetáculo e músico, cria uma trilha sonora que envolve todo o espetáculo e que estrutura também a movimentação do elenco. Acompanhando e produzindo sonoridades, o elenco cria uma grande coreografia de ações e situações sem perder a coerência dramatúrgica e as discussões a que se propõe. A precisão corporal do elenco surpreende e é fundamental para a composição estética da obra.
Mesmo com a ausência de diálogos verbais, a obra se propõe atingir o público infanto-juvenil e busca despertar o interesse da criança e do adolescente através de criações simbólicas e imagéticas capazes de trazer à tona questões políticas e sobre direitos humanos, sem subestimar a capacidade intelectual e associativa de seu público. Abrazo não é um espetáculo somente para crianças ou para adultos, mas sim uma obra com classificação livre e que se dispõe a dialogar com qualquer público disposto à cena lúdica.
Em um espaço imaginário onde as expressões de afetos são reprimidas, diversas personagens aparecem na tentativa de (des)obedecer as normas. O menino, a florista, o viajante e o indígena buscam maneiras de viver o presente, enquanto um general fiscaliza as ações e exige certas posturas, sem perceber que suas atitudes irracionais acabam por ridicularizá-lo. Abrazo é um espetáculo estreado em 2014, com dramaturgia baseada nas pesquisas de Galeano que se debruçaram sobre sistemas ditatoriais recorrentes na história da América Latina. Após dezenas de apresentações, ao imaginar que a obra tratava sobre um passado, vivemos o absurdo temporal de Abrazo tornar-se uma obra que fala sobre o presente. Quase como uma infeliz previsão do que viveríamos em 2019, é impossível não reconhecer nosso atual presidente na figura do general (inclusive, com semelhanças físicas de um desenho criado há cinco anos) e não temer pelo retorno da censura e das práticas de tortura ou repressão dos atos afetuosos. E para piorar a paisagem grotesca, o espetáculo ganha um caso explícito de censura em seu histórico, em pleno século XXI, quando suas apresentações são vetadas na Caixa Cultural de Recife com justificativas esdrúxulas.
Pensando na sobreposição de gerações que compõe o presente, observar tantas crianças sentadas nas cadeiras de um teatro, assistindo a um espetáculo é um dos atos políticos mais urgentes que existem. Reforça a responsabilidade curatorial de oferecer na programação de um festival, ao menos uma obra que se direcione ao público infanto-juvenil, visando não somente a formação de público, mas também a de cidadãos críticos e conscientes da importância da cultura para um povo. Nesse sentido, destaco a cena onde o general tortura a florista, com uma poética ímpar, sem explorar a estética da dor e do sangue, os atores conseguem transmitir as intenções da tortura em retirar do corpo aquilo que lhes é importante, seu trabalho, seus movimentos, sua cidadania. E como é fundamental que crianças e adolescentes (e porque não, nós adultos) possam compreender os efeitos da violência sobre um corpo e assim evita-los.
Na apresentação das personagens, logo no início do espetáculo, há uma problemática em relação a representação do indígena. Se por um lado, a obra trata dos afetos e suas repressões, por outro acaba reforçando uma prática de exclusão de corpos não-brancos. Em Abrazo, todas as personagens apresentadas são corporificadas, tanto nos atores quanto nos desenhos que aparecem em projeções. Enquanto o indígena é representado por uma peteca. Mesmo assumindo uma função de transgressão diante das imposições do general, a objetificação desse corpo só expõe a naturalização da prática de uma branquitude que não conseguem colocar em cena essa figura, por não compreendê-la em sua humanidade e presença, em decorrência do processo histórico de dizimação das comunidades indígenas. Essa escolha cênica pode ser vista de modo ainda mais problemático, se pensarmos que a referência utilizada de Galeano traz uma pesquisa rebuscada sobre a América Latina, um espaço que foi formado prioritariamente por diversas comunidades indígenas. A estrutura colonizadora acaba se repetindo na obra, mesmo que de forma “sutil” e pode ser repensada.
No fim, através da desobediência, o menino enfrenta o general e consegue retirá-lo do poder, tornando a expressão do afeto novamente possível. Após manifestações populares de diferentes ideologias, representadas por patinhos, escovas de dente e placas, após muitas fiscalizações e até torturas, o menino consegue ridicularizar o general e em meio ao caos que ele constrói, o general é preso em uma cena lúdica e simbólica. Nesse momento, lembro de uma criança comentando, “nossa, que bagunça”. Apesar do menino conseguir reconstruir um espaço onde a permissividade torna-se possível novamente, me questiono se o caos, a bagunça, a desobediência de fato constroem liberdade ou não se torna realidade para outras opressões veladas. Na desordem, se não há profunda consciência ética e responsabilidade de todos, há uma tendência a criação de novas hierarquias que muitas vezes visam interesses próprios disfarçados de coletividade. No entanto, diante da mazela ditatorial que estamos vivendo, o desejo do caos, da vingança, da destruição da ordem vigente a qualquer custo é completamente real, e talvez tenha sua coerência. Mas, provavelmente esta seja nossa maior questão: como desestruturar os sistemas opressores, preconceituosos e excludentes sem criar espaço para seu próprio retorno, mas sim educando a população para uma consciência de preservação da humanidade e exercício da cidadania.