Por Heloísa Sousa
08/03/2020
São Paulo, 08 de março de 2020.
Esse texto contém descrição de todo o espetáculo.
Teatro Paulo Autran no SESC Pinheiro. Terceiro espetáculo do dia. Nove horas da noite. Espero que o cansaço não me vença. Pelo menos não está tão frio. Entramos. No palco, um papelão gigante, com vincos e recortes, cobre quase toda a área cênica. Esse papelão está dentro de uma estrutura com uns cinco ou dez centímetros de profundidade, lembrando uma piscina gigante, totalmente forrado com plástico preto. Imagino que aquela estrutura sirva para proteger o palco de alguma coisa. Ao fundo, a performer e diretora Phia Ménard, sentada em uma posição peculiar, observa o público entrando. Ao seu lado, um vaso preto com varas pretas enormes. A performer veste uma roupa meio punk, meio kitsch, com couro, joelheiras douradas, cabelo loiro bagunçado, uma jaqueta vermelha, uma meia calça estampada e uma máscara preta cobrindo os olhos.
A estreia de “Contos Imorais” foi na Documenta de Kassel em 2017, um dos eventos de arte contemporânea mais importantes do mundo. Segundo a sinopse da obra, a ideia era criar algo que fizesse um paralelo entre Kassel, cidade alemã em sua imponência e Atenas, cidade grega em crise.
O espetáculo, na realidade, é uma ação performativa com forte potencial dramatúrgico. Nenhuma palavra é dita, mas a elaboração imagética, a (des)construção espacial e a corporalidade de Phia Ménard já é suficiente para elaboração de muitos pensamentos críticos sobre as estruturas/instituições que criamos.
No início, a performer ronda todo o limite do papelão gigante com um andar amplo e pesado, o som do salto alto dialoga com uma trilha sonora que parece fazer eco de sons comuns e traz mais amplitude espacial. A figura criada por Ménard, desde a vestimenta até as movimentações, vai de uma leitura satírica ao magistral. Se de início, a sobreposição de texturas, cores e estampas da vestimenta parece ser meio brega, a postura da performer vai ganhando força ao longo da obra e vamos percebendo ali um misto de gladiadora com grande deusa, uma figura que tem força e inteligência suficiente para erguer qualquer coisa, ao mesmo tempo em que sabe do futuro daquilo que foi erguido e espera pacientemente pelos desabamentos.
Ao longo de uma hora, ou mais, a performer começa a erguer o papelão. Com ajuda de algumas varas pretas que parecem lanças em suas mãos e a ajudam a criar uma figura cada vez maior naquele espaço, ela vai espetando e apoiando partes da estrutura – aparentemente – frágil. O papelão é como aqueles exercícios de geometria que tínhamos nos livros de ensino fundamental, onde recortávamos a figura e com dobraduras e um pouco de cola, íamos montando aquele papel até que ele se tornasse uma figura tridimensional. No caso desta encenação, Phia vai erguendo os pedaços, colando com fita crepe e vemos surgir uma casa. Desses formatos convencionais que desenhamos quando crianças – e ainda quando adultos também. A dimensão espacial da cenografia poderia facilmente engolir a perfomer em cena, no entanto, a sonoridade elaborada, as varas-lanças pretas e a partitura corporal elaborada com movimentos grandes e esforçados fazem crescer o corpo da artista nas mesmas dimensões. Phia Ménard não é parte do espaço, ela é elaboradora dele.
A casa é erguida e nesse momento Phia encontra-se dentro dela. Barulho de serra elétrica invade o teatro e começa a cortar o papelão de dentro para fora. De onde raios ela tirou essa serra elétrica? Com alguns socos, pedaços de papelão vão caindo. Ménard construiu um Partenon. Quando eu vi a estrutura no palco, sabia que aquilo me lembrava algo mas não recordava exatamente o quê. Na leitura do texto crítico de Daniel Todelo (publicado no site da MITsp) sobre a obra, ele cita a alusão ao Partenon e eu imediatamente associo a minha lembrança. A casa, agora se transformara em uma estrutura que se assemelha ao edifício da Grécia Antiga dedicado a deusa grega Atena e que servia como símbolo da recém-nascida democracia. Curioso descobrir que a palavra Parthenon, no grego, significa “quarto de mulher solteira em uma casa”.
O Partenon é erguido, Ménard sai da estrutura pelas aberturas laterais e observa. Então, começa a chover. A perfomer se senta ao fundo do palco e espera. Durante vinte minutos, ou mais, ou menos, vemos a atuação da água sobre o papelão. Lentamente a estrutura começa a ruir silenciosamente. O papelão amolece e não mais suporta o peso e ação da água. O teto da casa-partenon vai abaixo. Uma fumaça intensa começa a ser jorrada do centro do palco em direção aquela ruína, parecem nuvens guerreiras, o céu está desabando também.
A performer espera tudo pacientemente no seu canto, com um corpo de quem sabe o que vai acontecer e sabe aguardar a ação da chuva também. Ela olha as ruínas e sai de cena. Importante destacar que Phia Ménard é uma mulher artista trans e sua presença enquanto corpa-sujeita-criadora já elabora muitas questões também.
Gastei quase duas laudas de texto para descrever a obra de Menárd porque a ação é tão potente por si só que parece dispensar qualquer teoria. Mas, ainda assim, discorro sobre. Penso que “Contos Imorais” é uma obra sobre desabamentos, sobre narrativas, instituições, [democracias] em falência. E ainda mais, sobre observarmos a falência e a ruína diante dos nossos olhos. A casa é, muitas vezes, lugar de retorno, de abrigo, de acolhimento. A mãe é, muitas vezes, aquela que gera vida, que cuida, que media experiências e que nos oferece ao mundo. Se as instituições e as narrativas que criamos deveriam servir a nossa proteção e ao nosso exercício de liberdade, ao contrário disso, tem sido instrumento de encarceramento e limitações da humanidade [assim como, algumas vezes, as mães e as casas]. Embora tenha estrutura frágil, como o do papelão, embora a sua ruína seja previsível, é preciso ações fortes para levá-la abaixo como a chuva constante ou a serra elétrica. O paradoxo da resistência dessas estruturas nos leva a conflitos e crises. Lembro do livro “Cómo vivir en tiempos de crisis?” do filósofo francês Edgar Morin, quando este fala de que nada dura para sempre e que as ruínas são inevitáveis na humanidade, incluindo a própria crise.
Poucas horas antes, estava no teatro Cacilda Becker, assistindo a obra “O que fazer daqui pra trás?” de João Fiadeiro, um dos intérpretes fala que a vida é como um jogo de tétris, as peças vão surgindo e você vai tentando encaixá-las. E quando as coisas dão certo, tudo desaparece.