[Sobre aquilo que eu devia ter memorizado, mas não memorizei...]

Por Heloísa Sousa
16/03/2020

São Paulo, 16 de março de 2020.

Depoimento crítico escrito durante o início de uma quarentena em decorrência do Corona Vírus que se tornou uma pandemia e quase impediu a realização do final da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Aulas foram suspensas, atividades canceladas, lugares estão sendo fechados e mesmo tentando desobedecer o vírus, ele avança com uma onda de pânico junto. Sigo em casa, me dedicando a algumas coisas e me debruçando sobre os sete textos que eu decidi escrever.

Texto um.

“By heart” é uma expressão em inglês equivalente ao nosso “de cor” e que designa aquilo que foi memorizado a ponto de ser repetido naturalmente por alguém. Se na língua portuguesa, também dizemos que sabemos algo “de cabeça”, na língua inglesa é possível dizer que se sabe algo “de coração”, na tentativa de pontuar uma relação entre aquilo que é memorizado e o afeto que atravessa essa ação.

Tiago Rodrigues, encenador, dramaturgo e ator português, que é também um dos artistas em foco na sétima edição da MITsp, utiliza essa expressão e esta ação para desenvolver a sua obra. Quando entramos no Teatro da FAAP – em toda a sua imponência europeia e elitista – nos deparamos com o artista sentado em um banco alto e sem encosto, enquanto lê um livro. Ao seu redor, dez cadeiras diferentes e vazias estão dispostas formando um semicírculo, no meio desta formação, duas caixas de madeira guardam vários outros livros.

A obra não é uma peça teatral com personagens sendo representados, nem cenários elaborados e muito menos uma narrativa que se desenrola sobre o palco. Usando sua própria história, o que Tiago Rodrigues faz é construir com todos os presentes um momento para memorizarmos e assim fazer com que certas coisas não se percam no tempo. Com uma postura cotidiana, tentando construir certa empatia e uma atmosfera descontraída, o artista apresenta ao público como se dará esta encenação. Para iniciar a obra ele precisa que dez pessoas do público subam ao palco e ocupem as cadeiras. As pessoas que se propuserem a isto terão o desafio de memorizar um soneto inteiro de Wiliam Shakespeare. Não haverá outros tipos de interações para além disso, mas o público pode se sentir à vontade para beber água ou perguntar qualquer coisa que precisar e deve também se sentir confortável para errar na tarefa de memorização.

Dez pessoas ocupam as cadeiras com muita rapidez. Gostaria muito de ser uma delas, mas as fileiras de cadeiras do Teatro da FAAP são tão estreitas que eu teria que perturbar ao menos umas dez pessoas até conseguir alcançar o corredor que me daria acesso ao palco, isso se eu conseguisse chegar lá antes das cadeiras serem ocupadas, desisti. Primeira frustração.

O ator-dramaturgo-encenador começa a trazer a história de sua avó, que tinha o hábito de memorizar textos e trechos de autores que gostava, em uma tentativa de tê-los sempre por perto, desafiando inclusive sua eminente cegueira. Com isso, Tiago Rodrigues oferece não somente a memorização de um soneto do dramaturgo inglês William Shakespeare, mas também compartilha histórias icônicas de autores lidos por sua avó e por ele, como o russo Boris Pasternak, o norte-americano Ray Bradbury e o franco-americano George Steiner. A partir dessa situação, tínhamos o cruzamento entre narrativas, pensamentos filosóficos e a tentativa de memorizar. Sim, porque quando o desafio é posto aos dez que estão nas cadeiras no palco, eles se tornam uma extensão da plateia que também passou a se esforçar pela memorização, incluindo eu.

Após o quarto verso memorizado por todos, Tiago desconstrói a proposta. Os dez versos que restam seriam memorizados cada um por uma pessoa no palco, o que suaviza o desafio, mas também não segue a proposta apresentada inicialmente. Segunda frustração, mas com fortes doses de alívio, pois a esta altura, as narrativas já estavam se esvaziando e pareciam um retorno infinito ao íntimo de Tiago que não reverberava mais sobre mim.

Em certo momento de minha inquietude na cadeira, uma das moças – chilena – sentadas no palco levanta a mão e pergunta: “sua avó não lia autoras mulheres?”. Tiago responde com certa indelicadeza que sim, claro que sim, mas que naquela época os autores homens eram mais conhecidos, pois era uma época machista e ele (Tiago) não pode mudar a história, portanto seguiria com a sua proposta. A moça questiona sobre a importância de citar autoras mulheres para que não nos esqueçamos delas também. Terceira frustração.

Tiago Rodrigues não soube lidar com aquilo que ele mesmo citou como uma das palavras mais interessantes da língua portuguesa: vulnerabilidade. Quando uma obra abre espaço para interação com o público, ela permite que esse mesmo público componha dramaturgicamente com o trabalho dentro da proposta apresentada. Se a interação não permite esse tipo de composição, o público passa a ser apenas objeto de cena e construtor de uma imagem pré-formatada. A questão da interação na cena contemporânea é fundamental para pensar as relações de poder entre os corpos, a imprevisibilidade do momento presente e a porosidade da obra cênica valorizando a sua profanação, ao invés de reforçar uma sacralização renascentista, onde o artista tenta a todo custo proteger sua ideia e não oferece-la ao outro, permitindo-se também escutar.

É no encontro, na troca, no diálogo e na escuta que podemos subverter as ordens vigentes, questionar a história e oferecer a todes o direito de estar na memória da sociedade. Ao ignorar a intervenção da mulher chilena, Tiago Rodrigues apenas reforçar seu lugar de fala e apoia uma construção patriarcal que ignorou produções de muitas mulheres – em sua diversidade – se valendo justamente do esquecimento, da não memorização. A invisibilização de pessoas e pensamentos geram a falsa sensação de ausência. Mulheres autoras sempre existiram, mas havia uma escolha em não citá-las, em não lê-las, em não produzi-las, em ignorá-las, mesma escolha feita pelo artista em “By Heart” no momento em que é questionado.

A peça segue seu fluxo, com aquela ferida aberta pela chilena, e parece que dali pra frente nada mais se sustenta, como quando molhamos as páginas de um livro e perdemos o seu conteúdo. Eu, mulher, lembro de como passei a ler basicamente autoras mulheres nos últimos anos, depois de perceber a educação patriarcal e masculina que recebi. Não porque autores como Shakespeare, Pasternak, Steiner e Bradbury não mereçam ser lembrados, mas porque existe uma urgência em preencher lacunas de conhecimentos que nos são impostas. Todos os autores citados por Rodrigues são homens brancos, e não é preciso fazer nenhum grande esforço para eternizá-los na memória. Shakespeare resiste por séculos até naqueles que não saberiam citar se quer o título de alguma peça desse dramaturgo.

“By Heart” é a uma obra sobre a memorização de um soneto como tentativa de preservá-lo sobre o tempo. Mas, preservar os imortalizados pela sua masculinidade e branquitude? Pensando na performatividade da ação proposta, o que seria mais urgente fazer naquele momento? Que outro direcionamento a obra poderia ter tomado a fim de torna-la porosa a problemática ressaltada que ressoava diretamente em ao menos metade da plateia? O que de fato, precisa ser memorizado? Ao invés disso, Tiago Rodrigues escolhe silenciar a questão – embora ela tenha se tornado a questão em si da obra e ecoado com muito mais força – e continua a contar a versão do hegemônico, sacralizando e protegendo seu trabalho, tornando o público subserviente ao seu discurso.

De coração, pra mim, a obra perde seu sentido.

OBS: As fotos usadas no site do Farofa Crítica não correspondem a apresentação durante a MITsp citada nesta crítica, são fotos divulgadas para a lista de imprensa pela organização da Mostra. Fotos de Magda Bizarro.

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