Por Heloísa Sousa
30/03/2020
Depoimento.
“Orlando” é uma instalação vídeo-musical que foi apresentada durante a sétima edição da Mostra Internacional de São Paulo. Com duração de 50 minutos, ao adquirir os ingressos, o público era convidado a adentrar o espaço onde estava a instalação, podendo sair no momento que desejasse ou ficar até o final do tempo estabelecido. Antes da entrada, algumas indicações, por ser uma instalação, a relação temporal pode ser definida pelo espectador, precisávamos ter cuidado para não mexer nos objetos e fios dispostos, podíamos transitar por onde quiséssemos. Enjoy it!
Mas nem tanto.
O espaço, uma grande sala escura – na verdade, era o palco de um teatro – com grandes telas brancas dispostas em formato de polígono. Criando um espaço interno e externo desse formato, onde de qualquer posição era possível visualizar as projeções. Em cada projeção víamos uma pessoa em um local aberto, talvez durante um entardecer ou um amanhecer – esse tempo de transição – com olhos fechados e movendo-se lentamente como uma dança do despertar. No centro da instalação, uma artista produzia sonoridades com alguns instrumentos musicais. Uma atmosfera de suspensão e calma era instaurada. Muitas pessoas do público deitadas ou sentadas ao centro observavam pacientemente as pessoas projetadas, de vários gêneros, raças e idades. A obra acaba determinando um tempo de apreciação, onde até o nosso deslocamento ao seu redor se põe mais lento, passo a passo, um caminhar paciente, sem muitas mudanças.
O andar do público provocava sombras nas projeções. Imaginei que ali era uma possibilidade de relação com a obra, não poderia tocar nos objetos, mas a produção de sombras seria tocar o etéreo que a instalação propõe. Sento próxima a uma das projeções e deixo meus dedos fazerem sombras nas grandes telas e vou tocando suavemente os corpos que dançam. Rapidamente, uma mulher me toca, don’t, peço desculpas pela intromissão. Em seguida, um homem tenta fazer o mesmo e a mulher reaparece, don’t. Algum tempo depois, uma moça senta-se diante de uma das projeções e tenta imitar o movimento do rapaz projetado, dançar junto, um pedaço minúsculo do seu joelho causa sombra e a mulher re-reaparece, don’t.
Incômodo. Proibição. Quando te impedem de fazer algo que para você parecia fazer sentido. Quando dizem ser errado aquilo que você não concebe como erro. Diante de um espaço de instalação, de uma sugestão de desvio e performatividade, me questiono qual o lugar da interação na cena contemporânea? Ou até as performances tornaram-se quadros contemplativos? Em que medida o público é apenas objeto de observação daquilo que o artista deseja expressar? E se, por acaso, for apresentado um espaço interativo ou de desvio ou de possibilidades de deslocamento, enjoy it, como o artista pode evitar a sacralização de sua obra e permite-se poroso diante da presença dos outros? Ou o que o público desejar fazer diante da obra tem que ser o que o artista precisa que ele deseje? Desejos cercados.
Perco a conexão com a obra. Só consigo olhar para aquelas pessoas todas olhando para as imagens, ausências, pausas, e nós ali presentes, admirando as ausências. Obviamente que minha recepção da obra foi fortemente atravessada pela experiência de tolhimento que vivi e por isso não arrisco dizer que esse seja um texto crítico, é mais um depoimento sobre certas impressões.
A experiência de dilatação temporal que organiza o corpo da plateia em passos calmos e controlados, pouco barulho, nenhuma conversa, miradas infinitas, pode parecer uma alusão a estados meditativos. Penso que há uma compreensão talvez equivocada sobre relações entre arte e meditação. Meditação não tem a ver com parar, contemplar somente ou não fazer nada. Meditação está relacionado a manter-se no momento presente, um exercício de trazer seu corpo-mente de volta ao agora, enquanto ele insiste em seu perder no desvio do passado-futuro. E o momento presente, o agora não se determina pela lentidão ou pela pausa ou ainda pelo silêncio. O silêncio não existe.
A instalação de Beauvais e Lundd é baseada na personagem andrógina Orlando do livro homônimo da escritora inglesa de Virgínia Woolf. Portanto, os artistas buscam através de uma linguagem que transita entre a música, a dança e o vídeo, sugerir um espaço-tempo pós-binário. Embora nenhum tipo de desconstrução ou reperformance de gênero seja apresentada na instalação que nos faça remeter a essa discussão. A contrário, os corpos projetados são facilmente identificáveis através das nossas lentes binárias e não há convites a outros olhares. A obra se autodetermina e nos quer apenas diante dela, me questiono novamente os signos europeus desse trabalho em terras latino-americanas. Há, em nós, uma urgência pelas recomposições.