Por Quemuel Costa
04/08/2020
Euler Lopes e Isabel Santos são dois artistas sergipanos. Ele é dramaturgo. Ela é atriz e produtora com quarenta anos de carreira. Da parceria entre o jovem dramaturgo e a atriz com tantos anos de palco – parceria essa que infelizmente ainda é rara na cena teatral – surgem os espetáculos “Senhora dos restos” (2014) e “Piedade a seu dispô” (2019), ambos protagonizados por Isabel Santos e que tratam, entre outros assuntos, da miserabilidade brasileira e trazem no centro de suas histórias uma mulher, uma voz feminina. Graças ao Cenas do Nordeste, festival online que no meio desse caos pandêmico nos trouxe um respiro, tive a oportunidade de assistir “Piedade, a seu dispô”, que estreou há menos de um ano, em outubro de 2019.
“Como poderei viver
Como poderei viver
Sem a tua, sem a tua,
Sem a tua companhia”
O monólogo começa com uma cantiga, que no ritmo cantado pela atriz, parece muito mais um lamento, um choro que só ao fim do espetáculo entendo o motivo. Quem canta é Piedade, uma empregada doméstica, que após mais um dia exaustivo de trabalho, é abordada por policiais, que querem revistá-la e ver o que ela carrega em suas tantas sacolas. E Piedade mostra, sacola por sacola, o que carrega. Metafórica e literalmente: são várias sacolas distribuídas pelo palco e a personagem interage com elas durante todo o espetáculo, seja mostrando o que há dentro, carregando-as de um lugar para o outro, realizando partituras ou fazendo com as sacolas uma barreira ao seu redor. O jogo das sacolas é interessante, mas torna-se cansativo, pois acaba se tornando excessivamente repetitivo e até mesmo previsível em alguns momentos. Ainda assim, isso também revela a situação repetitiva e cansativa à qual Piedade está inserida e não consegue escapar: a quantidade de sacolas, mágoas e opressões que ela tem que carregar sem direito de escolha.
Uma das coisas que mais me chama atenção na personagem criada por Euler e Isabel é que ela não leva desaforo pra casa, nem mesmo da polícia. Ela rasga o verbo, abre as sacolas e derrama no palco todas as suas dores, tristezas e ódios. Sim, ódios. Piedade é uma mulher com raiva e com toda razão. Em alguns momentos me lembra algumas personagens de Marcelino Freire, em especial Totonha e a do texto “Da paz”. Essa semelhança é confirmada em um momento da peça em que Piedade recita o seguinte:
“A paz é perda de tempo. E o tanto que eu tenho para fazer hoje. Arroz e feijão. Arroz e feijão. Sem contar a costura. Meu juízo não está bom. A paz me deixa doente. Sabe como é? Sem disposição. Sinto muito. Sinto. A paz não vai estragar o meu domingo.”
Diferente do que vemos em algumas obras audiovisuais como o filme “Que Horas Ela Volta?” de Anna Muylaert, “Roma” de Alfonso Cuarón ou ainda o documentário “Doméstica” de Gabriel Mascaro, onde as personagens estão no início de um processo de conscientização e desnaturalização, Piedade já inicia a obra bem posicionada, muito certa de quem são seus algozes, enxergando as opressões do seu dia-a-dia. A ficha já caiu e a consciência de classe, as questões sociais ou seja lá como você quiser chamar, já estão lá. Ela não se sente e nem acha que é “parte da família” para a qual trabalha, por exemplo. Na verdade, ela parece muito mais é odiar a sua patroa. E com razão. Piedade sabe e tem total consciência das violências que a atravessam. Não há inocência, ingenuidade ou naturalização. E ela faz questão de escancarar e explicitar cada uma dessas violências. Piedade traz um “posicionamento” não de quem leu teorias, mas de quem dolorosamente aprendeu com a vida. Piedade grita, em outras palavras, que “vidas negras importam” não por conta de uma hashtag ou de uma corrente, mas porque foram os seus filhos que foram assassinados por um país que é “um moinho de gastar gente” (Darcy Ribeiro). Ela fala contra a violência e truculência da polícia porque é humilhada por policiais quando está voltando do trabalho. Piedade fala com muita propriedade porque fala de um lugar que é estruturalmente dela.
“Arrancaram meus fio de mim, feito fazem com filhote de cachorra. Eu sou mesmo uma cachorra veia de rua que pouco importa por onde zanza. CACHORRA. Choro de cachorra num dói nos ouvido. Choro de cachorra que arrancaram seus fio, ninguém dá importância.”
Apesar do aspecto “raivoso”, há também muita sensibilidade no espetáculo, especialmente na atuação de Isabel e nas palavras de Euler. Nos momentos em que a personagem se permite ser frágil e mostra suas mágoas, em que vemos seus olhos cheios de lágrimas por saudade dos seus filhos assassinados, é ainda mais evidente a beleza da atuação de Isabel Santos. E a proeza de construir uma personagem que à primeira vista pode parecer simples, mas é extremamente complexa e humana. Em uma matéria do Jornal do Dia de Sergipe, que achei pesquisando mais sobre o espetáculo, a pessoa que escreve afirma o seguinte: “Isabel Santos é a maior atriz viva de Sergipe”. E eu acredito.
Apesar da extrema violência do Estado brasileiro, parece quase inverossímil que uma mãe tenha perdido todos os filhos para a violência policial. Talvez seja pela ingenuidade da crença de que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Mas eu penso que isso acontece também porque Piedade não é apenas uma, mas muitas. Representa muita coisa. Piedade é as mães negras que tiveram seus filhos assassinados por um Estado genocida, é as pessoas marginalizadas e invisibilizadas pelas quais ninguém se apieda, pelas quais o Estado não tem cuidado. Não à toa o nome da personagem é antes de um nome próprio, um sentimento, que no caso dela é um sentimento que os outros a negam.
Sendo ator, é sempre muito fortalecedor ver artistas mais velhos em cena. Ver os cabelos brancos iluminados pelos refletores. Me dá uma perspectiva de futuro. O que infelizmente acaba sendo raro: consigo contar nos dedos de uma mão os espetáculos que já vi e tinham atores com mais de cinquenta anos. Falei disso com Isabel Santos no bate-papo que houve no zoom após a transmissão do espetáculo e ao falar sobre a ausência de atores velhos em cena e a desistência de colegas de trabalho, com tristeza ela parafraseia um trecho do próprio espetáculo: “Não é todo mundo que aguenta essa vida aqui não”.
“Nois tudo aqui só no padecimento, é uma peleja danada, que quando um ou outro segue a trilha errada, num pode de ter recriminação. Né todo mundo que aguenta essa vida de faxina, de limpeza, de servir os outros. Eu vou morrer sem entender.”
O que reflete a falta das condições necessárias para continuar fazendo nosso ofício, além de uma cultura que descarta pessoas velhas, o que por si só já dá pano pra manga pra fazer outro texto. Mas queria encerrar esse aqui com um trecho de uma das cartas do Caio Fernando Abreu para Bruna Lombardi, que me veio à cabeça ao lembrar de Isabel interpretando Piedade e principalmente falando no bate-papo: “Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar também”.