[A real poesia do cotidiano...]

Por Heloísa Sousa
23/08/2021

Entre os dias 21 e 30 de agosto, acompanharemos o XIV Festival Velha Joana de Primavera do Leste (MT) que acontece com ações presenciais e virtuais, onde se destacam a exibição de dezenas de espetáculos teatrais em suas mais diversas estéticas e hibridismos através de canal no Youtube.

Um dos primeiros espetáculos exibidos é a obra “Vagor e Bellavita” da Cia. Dromocósmicas (PR), uma companhia de teatro itinerante que surge em 2010 com os artistas Camilla Bombardini e Byron Skouris dedicando-se às pesquisas entre o teatro e a linguagem circense. Vagor e Bellavita são dois palhaços que vivem em situação de rua, se encontram ao acaso e se veem impelidos a algumas partilhas, sejam elas de comida, materialidades, situações, desejos ou sonhos.

Se há algo que se destaca enquanto um dos aspectos mais bem elaborados da obra é a articulação da encenação junto a elementos da arte circense. A tentativa de cruzamento entre a arte do teatro e a do circo, frequentemente produz obras onde o virtuosismo recorrente no circo gera abismos na mise-en-scène, prejudicando o desenvolvimento da dramaturgia proposta e criando cenas que parecem saltar de uma estética para a outra, sem que haja de fato um hibridismo que potencializa o encontro entre as duas. E é justamente isso que não acontece em “Vagor e Bellavita”.

A direção e dramaturgia partilhada entre Bombardini e Skouris, que também dividem a cena sendo os dois palhaços da obra, conseguem articular uma encenação onde os aspectos visuais, sonoros e narrativos se desenvolvem em uma sobreposição tão coerente que contribui significativamente para que o público possa acompanhar a situação vivida pelas figuras. A poesia da simplicidade se destaca tanto na escolha dos elementos que compõem a cena como no discurso da obra.

O cenário, o figurino e a iluminação parecem ser compostos por poucos materiais, mas que são dispostos no espaço de modo a criar perspectivas e profundidades que ampliam a espacialidade da narrativa e que servem aos deslocamentos e interações que dialogam com a dramaturgia. Vagor e Bellavita não tem uma casa, não partilham do mesmo teto, nem se quer correspondem às expectativas heteronormativas que nos forçam a sempre ver um relacionamento romântico na convivência entre um homem e uma mulher. E talvez neste ponto, se encontre uma das articulações mais potentes da obra: a capacidade de tratar da amizade sem artifícios clichês que parecem querer nos ensinar modelos de relação. Ao invés disso, Vagor e Bellavita desenvolvem uma relação pautada na singularidade das situações vividas pelas figuras, sem espetacularizar o cotidiano nem sugerir nenhuma abordagem de superação de algo. É a convivência em sua mais simples materialidade. Os dois partilham o mesmo chão, partilham a mesma comida, objetos, roupas e o que for necessário a sobrevivência; mas, partilham também o riso e a tentativa de criar algo em comum.

É justamente essa simplicidade da relação e da situação posta que torna a obra uma experiência estética significativa e complexa, e que não se direciona somente ao público de uma faixa etária específica. Se de início, a narrativa parece não se desenvolver, por não criar nenhum tipo de clímax ou reviravolta; se pausarmos na reflexão sobre essas escolhas dramatúrgicas, é possível questionar nossa expectativa por um encadeamento de cenas que levem a um ápice de conflito, seguido de uma resolução e abrir espaço para a possibilidade de contemplação “do real cotidiano também matéria de poesia”, para usar as palavras do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade ao versar sobre o amor. Desloco o trecho do Drummond para essa crítica, na tentativa de também estimular uma possível discussão sobre o amor a partir da relação de partilha cotidiana de Vagor e Bellavita.

Outra questão importante diz respeito as referências estrangeiras elaboradas na obra que podem construir, à primeira vista, um distanciamento entre a poética da peça e a realidade apreendida pelo público brasileiro. Vagor e Bellavita são dois palhaços brancos em situação de rua – sabemos que, no Brasil, a maior parte das pessoas em situação de rua são pretas – a trilha sonora que se estabelece em um contínuo sonoro, visto que as figuras não usam a fala verbal, parece nos situar em alguma cidade europeia, o que é reforçado quando Vagor traz um cartaz de apresentação do número dele com Bellavita contendo dizeres em inglês. As escolhas podem se justificar pela origem ítalo-brasileira da Cia. Dromocósmicas e, também pela circulação recorrente do grupo por outros países; mas, mesmo sendo uma articulação do campo cultural dos próprios artistas criadores, o estranhamento entre o público brasileiro e a localização de tais referências em cena não deixa de ser uma questão que interfere na recepção.

Por fim, destaco a relevância do Cia. Dromocósmicas para o cenário brasileiro, assim como sua internacionalização, tanto pelo trabalho desenvolvido na palhaçaria, quanto pela habilidade em articular a linguagem teatral com elementos do circo, contribuindo com um campo de expansão do próprio teatro. Apesar das aproximações entre teatro e circo não serem novidade, a exploração de outros campos da teatralidade ainda parece ser marginalizada e não inserida em algumas curadorias, quando, na realidade, a própria experimentação da linguagem e sua exploração técnica constituem também um campo de performatividade.

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