Por Ronildo Nóbrega
28/08/2021
Desde que a pandemia de coronavírus transformou a presença física compartilhada em algo potencialmente perigoso e os teatros e espaços de cena brasileiros se tornaram impossíveis de serem habitados sem contribuir com a disseminação do novo patógeno e de suas consequências desastrosas, temos percebido a ação de grupos, espalhados por todo o território nacional, empreendendo um processo feroz de desconstrução de ideias caras ao teatro. Quando não simplesmente sucumbiram diante da impossibilidade do encontro, isto é, de estar cara a cara com o público, os artistas da cena aderiram às ferramentas completamente estranhas ao seu fazer, adaptando, construindo e reinventando narrativas e modos de existir.
Este é o caso da obra A Casatória C'a Defunta da Cia. Pão Doce, da cidade de Mossoró, Rio Grande do Norte, espetáculo que compôs a programação de diversos festivais ao redor do país e que retorna agora reformulado e atento ao pulso do mundo. Desenvolvido inicialmente para a rua e espaços alternativos, a obra apresenta, entre outras coisas, um relato divertido e multifacetado sobre o casamento. Nesta obra, estreada em 2014, acompanhamos a história de Afrânio e Maria Flor, duas personagens que descobrem o matrimônio (não como imposição, mas como laço intensivo, produto de um amor que se constrói e se desenvolve no transcurso do tempo).
O nó cômico é dado por uma personagem cadáver que, ao se deparar com uma declaração de Afrânio para Maria Flor (que, diga-se de passagem, encontrava-se ausente no momento), enxerga ali, finalmente, a chance de contrair matrimônio e usufruir das benesses de um contrato romântico. Há aqui, portanto, duas facetas do casório coabitando e se sobrepondo como camadas sutis, carregadas de humor e sátira; em primeiro lugar tem-se o casamento como contrato, exposto no início do espetáculo através da imposição ao casal protagonista. Já a outra camada é aquela do casamento como poesia, resultado de um enredamento de corpos e subjetividades, fruto de troca de olhares e até mesmo insultos.
Tudo isso é materializado através de um estilo que mistura influências que se estendem do Grupo Galpão até o grupo norte-rio-grandense Clowns de Shakespeare. Nesse sentido, o espetáculo da Cia. Pão Doce é carregado de encanto e, principalmente, da ideia de que o teatro pode ser, ainda, um modo de criar, inventar e pensar sobre aquilo que não tem uma existência concreta.
Quanto ao que assistimos agora na mais recente edição do Festival Velha Joana, ele mesmo adaptado e reconfigurado para as telas, nós espectadores damos de cara com uma obra que propõe dialogar intensamente com o espaço que lhe permite surgir e pulsar enquanto cena; a tela. A saída dramatúrgica da adaptação é simples: os personagens de Folha Seca, mundo fictício no qual se passa a aventura, aparecem em uma conferência remota onde telas-molduras enquadram suas falas e emoções. Numa conexão cômico-fantasmagórica que liga vivos e mortos, o grupo tateia, na onda de uma experimentação de linguagem que se espalha pelo país, um teatro que prescinde menos do contato e da presença física ator-público do que do seu espaço, a tela.
É esta última e sua configuração física que dá o norte da encenação e da dramaturgia. Nesse sentido, arrisco afirmar; quando a tela não busca somente transmitir ou mediar um acontecimento, neste caso, o espetáculo da Cia. Pão Doce, mas, de algum modo, reivindica a sua existência e chama para si um papel importante na condução de uma narrativa, estamos diante do que gostaria de chamar de telateatro (não confundir com o teleteatro, uma manifestação que pulsou nos anos 1950 e que seria apenas uma de suas facetas). Tal como o teatro de rua no qual é impossível escapar das dinâmicas e da organicidade da cidade, esta modalidade não escapa da lógica dos pixels, das conexões etc. No telateatro a tela não consiste apenas no suporte de uma imagem, mas, ao contrário, ela lhe dá origem. Em A Casatória C'a Defunta elas são muitas, se sobrepõe, aparecem e desaparecem ao sabor da história contada.
São adaptações como esta da Cia. Pão Doce, que existem não tão somente como o registro de algo preparado para a rua, isto é, de uma cena pensada para um outro espaço, mas que, ao contrário, pulsam enquanto artefato cênico autônomo que operacionalizam a tela como performance (ou a performance da tela); moldura capaz não só de mostrar, mas inventar um mundo só seu, cheio de particularidades. Logo, o que uma cena como essa e o teatro pandêmico nos impõe é, talvez, a ideia de que aquilo que permanece em relação a ele é promoção de experiências compartilhadas não importa o espaço aos quais elas venham a acontecer.
Obras como essa nos colocam o quão ingênuo seria, atualmente, nos perguntarmos se estamos ou não diante de teatro; existiria mesmo algo em relação a esta ideia, até um tempo atrás rígida como uma pedra, que não tenha sido implodida pela pandemia? Os cacos que o coronavírus produziu a partir da quebra de modos tradicionais de feitura teatral provam atualmente que o teatro existiu e sempre existirá enquanto alguém o colocar em ação e, nesse sentido, poderíamos afirmar que não há teatro que não exista enquanto plural, isto é, como experiências que pulsam e existem em sua singularidade.
Os anos pandêmicos irão, talvez, entrar para a história do telateatro como um ano em que os artistas, frente a uma política de contenção desastrosa e soterrados num mar de impossibilidades, aprenderam a existir e sobreviver a partir dos cacos de uma ideia (teatro enquanto presença compartilhada ator-espectador).
Leia outra crítica publicada no Farofa Crítica sobre este mesmo espetáculo aqui.