Por Heloísa Sousa
29/08/2021
Aquilo que está vivo se move, pulsa minimamente. De alguma forma ou outra, seja lentamente ou em velocidade, seja para qual direção for; o movimento é característico da pulsão de vida. Circuitos internos funcionam nos organismos para que eles se movam, cresçam, se reproduzam, de muitas formas diferentes. Mas, lembremos que nem todo movimento gera deslocamento ou é perceptível ao nosso olhar.
No teatro de formas animadas há uma poética onde se brinca de deus. Acho interessante criar essa aproximação entre o ato lúdico e o ato divino, deus como uma criança, aquela que observa as coisas para além de suas funcionalidades, aquela que exerce sua imaginação sem muitas fronteiras, aquela que anima – traz alma – objetos simples que possam servir a criação e experiência de um outro universo. Talvez o teatro de formas animadas nos impressione justamente pela sutileza desse gesto – da animação – e pelo nosso desejo e habilidade em recriar mundos para além daquele que vivemos, elaborando suas dimensões e fazendo coexistir essas múltiplas realidades. A criação sobreposta pela imaginação sobreposta pelo jogo. E nesse percurso, o artista transita entre a figura de deus e a figura da criança, sem deixar de evidenciar a artificialidade e a manipulação que sustenta a obra e que afirma o seu corpo nesse entre.
Importante destacar como a curadoria do XIV Festival Velha Joana trouxe um olhar atento para o teatro de formas animadas dentro da programação do evento. Espetáculos como “Louça Cinderella” da Cia. Gente Falante (RS), “Papelê – Uma Aventura de Papel” da Téspis Cia. de Teatro (SC), “Metamorfose” da Ereoatá Teatro de Bonecos (BA), “Sombreando Lendas” do Grupo Penumbra (MT) e “Saci Pererê: A Lenda da Meia-Noite” da Cia. Teatro Lumbra (RS) são exemplos de obras que se utilizam da animação de objetos para criação de encenação e dramaturgia. A presença dessas obras e grupos em festivais de teatro revela a expressividade dessa linguagem entre os grupos de teatro brasileiros, além de potencializar as discussões sobre cenografia e visualidade na cena ao enfatizar possibilidades de manipulação e de relações entre objeto, corpo e afeto. Ao invés de pensarmos de modo limitado, considerando o teatro de bonecos uma linguagem apreensível apenas para o público infantil, se tomarmos o paralelo acima entre a figura de deus e a figura da criança, tendo o artista-manipulador como um espaço entre, podemos perceber a importância de incluirmos essas obras nas discussões sobre teatro contemporâneo, recepção e imagem da cena.
A peça “Metamorfose” da Ereoatá Teatro de Bonecos (BA) traz em cena a personagem de um velho em um espaço rural e nos apresenta seu cotidiano, dia após noite após dia, onde a simplicidade configura sua rotina, mas a repetição promove movimentos e reflexões sobre o ciclo da vida. O senhor vive em sua rede, transitando entre estados contemplativos, troca de afetos com sua cabra, pequenas frustrações cotidianas e o deitar-se como marcação do fim de um dia. O que a personagem vive no período da obra é literalmente a passagem do tempo, que em sua lógica cíclica, traz e leva outras figuras de interação, elabora expectativas e exige que convivamos com a vida e a morte, começo e fim, ausência e presença. A repetição desse ciclo é tão incessante que chegamos ao ponto de nos confundir, e perceber o fim como início de algo simultaneamente. Se na primeira vista, esses antagonismos parecem diametralmente opostos, com o tempo os dois lados da moeda parecem ir se complementando cada vez mais. Talvez as coisas ao nosso redor não estejam vivas ou mortas, mas vivas e mortas... me atenho a não me estender nesse cruzamento filosófico, mas convoco o leitor a lembrar ou procurar mais sobre o tempo espiralar enunciado pela artista e pesquisadora brasileira Leda Maria Martins, ou ainda sobre o Teatro da Morte do encenador polonês Tadeusz Kantor.
Todas as noites, o senhor adormece enquanto lê um livro que na capa apresenta o título do próprio espetáculo. Inevitável não lembrar da obra literária de Franz Kafka, que também carrega esse título. Eu não li a obra de Kafka e, também não sei se o grupo a toma como referência, mas acho curioso que o senhor esteja lendo Kafka todas as noites antes de dormir, após vivenciar metamorfoses cotidianas. Em breve pesquisa pela internet, pude ler algumas resenhas sobre o livro que não me parece ter tantas conexões assim com a peça em questão nessa crítica. Em Kafka, a personagem transforma-se em uma barata e essa metáfora apresenta uma série de problemáticas sobre as relações sociais; talvez, o que coincida entre a peça do grupo Ereoatá e a obra do escritor tcheco é a relação com a solidão e o isolamento apresentada às personagens. Se a figura de Kafka é isolada por perder suas características humanas, a figura do senhor em “Metamorfose” parece ter aderido a solidão, embora a sua condição de velhice possa ter gerado esse isolamento do mesmo modo. Enquanto corpo ancião, o senhor parece conseguir relacionar-se apenas com os animais que o rodeiam ou com a própria natureza, seres incapazes de julgá-lo a partir de alguma expectativa de produtividade da sociedade em que vivemos.
A peculiaridade do teatro filmado nos faz perder uma dimensão importante do teatro de bonecos, que é a relação das proporções entre o público, o manipulador e os objetos manipulados. Não é possível identificar com precisão o tamanho dos bonecos e do cenário, e nem a relação entre esses e o meu corpo de espectadora; o que influencia na recepção da obra em sua vibração lúdica. No entanto, a exatidão, sutileza e acabamento dos elementos cênicos da obra fazem “Metamorfose” tornar-se uma memória forte e uma experiência estética singular. A iluminação, o cenário, a trilha sonora e a manipulação dos bonecos constroem uma narrativa objetiva e fortemente sensível. O modo como as figuras se deslocam combinadas com as sonoridades e vocalidades cedidas a elas, criam uma identificação entre as personagens e o público; ao ponto em que passamos a nos envolver com as perdas e conquistas do senhor.
Talvez esta seja uma das camadas mais vibrantes do teatro de bonecos elaborado pelo grupo Ereoatá, para além da percepção da narrativa e das discussões possíveis a partir dela, há uma potência que se resume a própria relação de contemplação entre o espectador e a técnica de manipulação elaborada em cena. Nesse sentido, a imagem, aqui, não se restringe as cores, linhas, formas e posições percebidas em sua presença ou significado, mas é também a própria técnica se apresentando como poética. Se em outras formas teatrais, a exacerbação da técnica pode ser interpretada como virtuosismo que desloca nossa percepção da obra em si; nesse teatro de bonecos, mesmo que os atores tenha sua dimensão humana totalmente ocultada por vestes pretas, a percepção da técnica é também parte integral da recepção da obra.