Por Ronildo Nóbrega
29/08/2021
Nesses tempos de morte à espreita, o riso promovido pelos palhaços e palhaças ao redor do país também encontrou sua forma de continuar existindo. Usufruindo das telas e de suas dinâmicas peculiares de enquadramento e de edição, muitos artistas do circo têm enlaçado o seu humor a uma boa dose de esperança e cura. Esse é certamente o caso do espetáculo Showzaças, da Minha Companhia Coletiva Artística, do estado de Minas Gerais. Conduzido pelas palhaças Brisa e Tecla, a obra flerta com uma poética minimalista e abrilhanta a décima quarta edição do Festival Velha Joana ao provar que o ato de sorrir possui uma função importante mesmo em um mundo completamente estilhaçado.
Dramaturgicamente a obra se costura como uma live, isto é, como uma transmissão operacionalizada pela e para as redes sociais. Bem próxima daquelas que os músicos tradicionais realizaram desde que a pandemia estourou no país, as palhaças aqui interagem, cantam e tematizam, através de uma harmonia contagiante, o regime de solidão imposto pela pandemia. O humor começa quando as artistas, logo de início, caçoam da própria mídia a qual resolvem abordar; a live é, para elas, uma live advertidamente falsa (e tá tudo bem, elas são palhaças!). Nesse processo de viver uma falsa transmissão, Brisa e Tecla mapeiam, banhadas em música, bom humor e a partir de uma encenação absurdamente simples, algumas das amarguras e traumas gerados pelo isolamento social.
O ato que abre o show das palhaças é um samba que tematiza o cotidiano pandêmico. O ritmo entediante dos dias, marcados pela repetição das mesmas atividades e desprovidos da magia e do poder do encontro com o outro, é abordado por meio de um refrão que capta a tentativa de existir em looping; “o dia começa e termina nessa repetição”. Iluminadas por uma luz azul que dá liga aos elementos da cena, os dois seres cômicos materializam um depoimento sutil e alegre sobre essa sensação pandêmica que hiperassemelha os dias e parece torná-los uma coisa só.
Num segundo momento musical, Brisa e Tecla abordam, agora a partir de um forró contagiante, aquele estranho desejo de sair e festejar; “acabando a quarentena... eu vou sair de casa para dançar lá no forró”. Seguradas em vassouras, as mulheres materializam a esperança de que o coronavírus dê uma trégua definitiva para que possamos reexperimentar algumas das sensações anteriores ao estilhaçamento do mundo pelo patógeno. O nariz gritante das palhaças e o espírito cômico que se apodera de seus corpos é, certamente, o elemento que aciona e estende em todas as cenas a nossa tolerância para sorrir de temas tão delicados como a quarentena e a solidão imposta por ela.
É desse modo que o espetáculo segue, isto é, com faixas e participações especiais, abordando de modo engraçado outras camadas do isolamento como, por exemplo, a realidade do casal isolado que carece daquele tempo distanciado um do outro (como se o amor romântico demandasse um distanciamento fora do lar para existir e se fortalecer).
Logo, nessa live cômica que poderia ser facilmente confundida com uma sopa de ritmos brasileiros, a Minha Companhia aborda sutilmente questões da quarentena para afirmar a força curativa do riso. Em um mundo que sofre um trauma coletivo a comédia promovida aqui pelas palhaças colocam que o ato de rir pode ser, ainda, uma forma de lidar com as feridas de um contexto social que é, na realidade, um desastre global.
Sorrir para curar sendo que o termo cura deve ser empregado não no sentido de reparação, isto é, de fazer algo retornar a um estado anterior (neste caso o mundo pré-pandêmico ou de nos transportarmos aos estados corporais passados). Está mais do que evidente que não há possibilidade de que o mundo retorne a ser o que era antes. Em contrapartida, a live Showzaças e a sintonia estonteante de Brisa e Tecla nos levam a crer que rir no estilhaço é uma ótima forma continuar existindo, de transformar a dor em outra coisa menos paralisante.
É preciso “tirar onda” daquilo que se passa para que, de algum modo, possamos enxergar melhor e transformar a nossa própria situação. O riso como prática de cura promovido pelas palhaças, portanto, seria esse processo de tornar o impacto da queda um tanto quanto mais leve. Trata-se de conviver e lidar com o estilhaço.