Por Diogo Spinelli
30/08/2021
Dentre as diversas modalidades abrigadas sob o conceito de teatro de formas animadas, o teatro de sombras é uma das que mais flerta com o misterioso e o sobrenatural. O fato de não sabermos exatamente o que acontece por detrás do telão e a pouca luminosidade característica desta linguagem aguçam a nossa imaginação, e é justamente isso o que ocorre quando assistimos a obra Sombreando Lendas, do Grupo Penumbra (MT), que fez parte da programação do XIV Festival Velha Joana (MT).
Por já prescindir de uma tela como suporte para sua realização, essa modalidade do teatro não parece ter sofrido tanto as consequências de ter que se adaptar para os formatos de recepção audiovisual ocasionados pela pandemia de Covid-19. O diálogo entre o teatro de sombras e os desenhos animados e outras formas de animação contemporâneas faz com que assistir a esse tipo de espetáculo pelas telas eletrônicas não seja uma experiência tão estranhada se comparada a outros tipos de manifestações cênicas. Perde-se apenas, talvez, parte do encantamento de se dar conta de que todo aquele universo surge em cena ao vivo e em tempo real, através da manipulação de figuras em papel por um número bastante reduzido de sombristas, sem que se saiba efetivamente como são os segredos que compõe esse fazer tão específico da arte teatral.
Ainda nesse sentido, e considerando que o arquivo disponibilizado para a exibição no Velha Joana parece ter sido filmado já durante a pandemia – uma vez que em seu início um dos sombristas está portando máscara de proteção e não há a presença de público – se não há grande prejuízo com relação à recepção do que acontece atrás da tela, os momentos de interação do elenco com uma plateia inexistente acabam por se tornar o aspecto mais frágil do trabalho no formato apresentado.
Em Sombreando Lendas são encenadas e narradas cinco lendas do folclore mato-grossense, sendo algumas delas bastante difundidas em todo o território brasileiro (como as do Lobisomem, da Mula-sem-cabeça e do Homem do Saco), e duas de caráter mais regional (as lendas do Ao Ao – de origem guarani – e do Minhocão). Ao apresentar cinco lendas calcadas na existência de seres fantásticos com características assustadoras, o trabalho estabelece seu recorte privilegiando estimular essa sensação na plateia, sendo recorrentes nas interações dos sombristas/atores com o público falas sobre se ter ou se estar com medo daquelas criaturas. Ao ser apresentada presencialmente diante de um público majoritariamente mirim, o trabalho certamente deve despertar fortes reações da plateia, interferindo diretamente na recepção da obra, aspecto esse que infelizmente não pôde ser transposto para a virtualidade.
Se por um lado esse recorte dá unidade à obra, com uma atmosfera que remete à contação de histórias de terror aos pés de fogueiras, por outro, perde-se a possibilidade de que o trabalho tenha mais relevos, podendo explorar os recursos do teatro de sombras, associados à trilha sonora, para explorar um universo mais amplo de lendas, e por consequência, gerar sensações mais diversas no público. Inclusive, o fato de serem cinco lendas que causam medo faz com que o uso de determinados recursos extremamente potentes – como a aparição das criaturas em tamanho real, com a utilização de próteses de papel anexadas aos corpos dos sombristas –, se torne um pouco repetitivo e previsível no decorrer do espetáculo.
Contudo – e entendo que isso possa parecer contraditório com o que acabo de escrever –, esse uso específico da utilização dos próprios sombristas como materialização dos seres fantásticos, ainda que utilizado algumas vezes ao longo da encenação, continua sendo um dos aspectos mais impactantes da montagem. A mescla entre um teatro de sombras mais tradicional (no qual há somente uma fonte de luz atingindo o telão de maneira uniforme e são manipuladas figuras estáticas de papel) e o que o grupo cuiabano propõe tanto com a utilização de lanternas que recortam o espaço da tela quanto com a interação dos sombristas em cena como personagens, possibilita uma dinâmica mais variada e contribui para a atmosfera mal-assombrada proposta na obra. Ainda nesse sentido, esse recurso faz com que os seres fantásticos ganhem especial vivacidade (e monstruosidade), quando comparados às demais personagens.
A dramaturgia proposta na obra opta por apresentar as lendas ao público de forma generalista, sem que haja necessariamente um desenvolvimento das mesmas, ou uma particularização ou individuação dos envolvidos em cada uma delas. Pessoalmente, assistindo ao trabalho, fiquei com o desejo de que o grupo se demorasse um pouco mais em cada lenda, principalmente naquelas de caráter regional e que eu desconhecia. Gostaria de saber mais sobre o Ao Ao, e o que aconteceu depois que ele foi avistado, bem como me deleitar mais no embate entre o pescador e o Minhocão.
Ainda assim, essa sensação pode decorrer em parte por estas serem lendas que eu particularmente não conhecia, diferentemente do público majoritário do Grupo Penumbra, que provavelmente já deve ter escutado ou contado essas mesmas histórias. Na verdade, esse parece ser o cerne da proposta do grupo nesse trabalho: manter ativas e vivas no imaginário da comunidade da qual pertencem as narrativas e lendas desta mesma comunidade.