Por Heloísa Sousa
30/08/2021
“Baixa Visão” é uma cena-curta-manifesto de Raniele Barbosa onde a artista canta, manifesta e interpreta simultaneamente um texto que projeta uma narrativa fragmentada e um grito. Um homem reclama de um pingo preto nos seus olhos, a médica revela que o pingo preto é uma mulher preta ocupando espaços negados a ela e, portanto, incomodando a visão dos corpos que insistem na manutenção das estruturas patriarcais, coloniais e machistas. Raniele utiliza da sua voz para presentificar as duas figuras e ao mesmo tempo tornar presente a si mesma, enquanto mulher preta, acompanhada de um percursionista que segue o ritmo de sua fala e traz dramaticidade ao manifesto. Não à toa, a escolha de ter apenas uma bateria acompanhando o manifesto faz ressoar a simbologia das batidas, pulso de vida. E não seria isso que o manifesto estaria evocando, a presença do pingo preto na visão da personagem citada como um pulso, muito mais do que mero borrão? A incapacidade da figura de enxergar o pulso como vida e potência, para além de algo que atrapalha a visão, reforça a limitação ética e o pacto colonial ao qual ele se integra.
Inevitável não pensar em outras performances de artistas que presentificam sua voz em nuances extremas para manifestar desejos, incômodos, angústias e principalmente, tornar vivo através da voz – da palavra – do som, aquilo que é apagado frequentemente. A palavra, logos, dominada pelo próprio homem na sociedade patriarcal-capitalista-colonial-branca-machista-cisheteronormativa, é também direito de uso negado a todes as múltiplas corpas diferentes dessa hegemonia. A palavra, seja ela escrita ou falada ou lida, foi silenciada, rasurada e ocultada quando proferida pelos corpos subalternizados. E então, esse ato que parece simples – apenas falar – retorna em algumas performances como ato primário de evocação da voz, do grito, da sonoridade que rasga e faz tremer as estruturas. O som aqui não é mais simples canção melódica que harmoniza e embala os sábados à noite, o som aqui que é vibração, ondas mecânicas, longitudinais e tridimensionais que podem romper barreiras materiais, inclusive.
Cada vez mais tem me interessado atos de canto, de leitura, de declamação como potência performativa, onde a própria palavra é reelaborada. Nessa obra, Raniele se junta, em minha memória, às artistas que leem ou declamam ou gritam como Jota Mombaça, Karen Finley e Victoria Santa Cruz. Não há como rejeitar o desejo de ouvir mais ou ouvir outras peças da artista que possam ecoar infinitamente e “soar como duas mil”, para citar uma das últimas peças sonoras de Mombaça.
Para assistir essa e outras obras do Festival Velha Joana, acesse o canal no Youtube do evento.
Heloisa, muito obrigada pela crítica precisa e afetuosa ao trabalho Baixa Visão. Que prazer ler. Um abraço forte!