Por Diogo Spinelli
30/08/2021
Um sapato solitário em busca de encontrar o seu par. Esse é o ponto de partida do espetáculo Zapato busca Sapato da Trupe de Truões (MG), grupo mineiro com quase vinte anos de atuação e de pesquisa contínuas no campo do teatro de animação, e que foi apresentada no domingo, dia 29 de agosto de 2021, dentro da programação do XIV Festival Velha Joana (MT).
No espetáculo acompanhamos a trajetória de Eudio, um sapato mexicano que, diferentemente dos outros calçados, saiu da fábrica sem ter um par. Na busca por encontrá-lo – afinal de contas, pra que serve um sapato sozinho? – Eudio começa seu percurso de peregrinação, que inclui uma escala no Brasil e encontra um fim em Moçambique. Lá, o sapato andarilho não encontra seu par, mas sim um menino chamado Mumba, que possui apenas uma perna, devido a ter sofrido uma amputação ao pisar em uma mina terrestre. Apesar da Guerra Civil Moçambicana ter terminado em 1992, as minas terrestres deixadas para trás em várias regiões do país tanto por guerrilheiros quanto por militares ainda matou e feriu moçambicanos por décadas, sendo que somente em agosto de 2015 o país terminou seu processo de desminagem, ficando livre da ameaça das minas antipessoais.
Não que essas informações sejam todas dadas ao público no espetáculo. Na verdade, o momento de encontro e de reconhecimento de pertencimento entre Eudio e Mumba acontece apenas nos três minutos finais da montagem. Dessa maneira, o conflito em Moçambique é apenas citado, não havendo na obra uma elaboração mais extensa sobre ele. Zapato busca Sapato parece fazer com que os e as espectadores mirins saiam da obra com mais perguntas do que respostas. O que aconteceu em Moçambique? Por que a presença de minas terrestres era comum naquele país? Quando os conflitos terminaram, se é que terminaram? Essas foram algumas das perguntas que eu mesmo me fiz ao assistir a obra, e sobre as quais precisei pesquisar para poder escrever o parágrafo anterior. Não deixa de ser sintomático pensar que desconhecemos tanto a história dos países localizados no continente africano.
Para além do conflito moçambicano, o trabalho traz à cena outras temáticas complexas, sem o objetivo de necessariamente explicá-las ou de torná-las o eixo central da obra, fazendo com que essas menções ajam mais como gatilhos para conversas em família posteriores à apresentação. Assim, vão permeando a trajetória de Eudio temas urgentes como a poluição dos oceanos e os fluxos de migração contemporâneos. Em uma lamentável coincidência, a impactante imagem de um barco carregado de migrantes, materializada com bonecos na obra, estampou novamente os portais de notícia do mundo no mesmo dia em que o espetáculo foi apresentado no Velha Joana: nesse dia um barco abarrotado com mais de 500 migrantes vindos da Líbia foi encontrado à deriva perto da Itália.
Nesse sentido, Zapato busca Sapato é um espetáculo que, apesar de direcionado ao público infantil, pode gerar ainda mais diálogos caso seja assistido em conjunto por crianças e por adultos. Ainda nessa perspectiva, existe uma certa camada na dramaturgia do espetáculo que poderá ser apreciada especialmente pelo público adulto, sendo o diálogo entre o par de chinelos cariocas - um de esquerda, e outro de direita, mas que gostaria ser de esquerda – seguido da cena com a Cuca Racha o melhor exemplo disso.
Durante todo o espetáculo, há uma incessante transformação da cenografia e de diferentes técnicas de manipulação de bonecos, sendo o próprio protagonista representado de três maneiras distintas no decorrer da obra: ora como fantoche, ora como máscara, e em determinado momento como um boneco em miniatura. Esse aspecto, associado ao fato de em sua trajetória Eudio encontrar um sem-número de figuras secundárias, como um peixe, um pelicano, um carangueijo, um sapateiro, entre outros, faz com que a obra se mantenha o tempo inteiro em movimento, com um ritmo frenético de novas informações sendo oferecidas ao público a cada novo instante. Esse fator é ainda reforçado tanto pela intensa expressividade corporal do elenco, seja quando manipulam as personagens, seja quando realizam coreografias que preenchem o espaço cênico, quanto pelo movimento de câmera, que compõe de distintas maneiras com a cena, e é capaz inclusive de causar certo mareio como na cena em que Eudio cruza os mares entre México e Brasil.
Se por um lado esses elementos dão dinâmica à obra e garantem a renovação do interesse da plateia recorrentemente, por outro, acabam por fazer com que o trabalho tenha poucos momentos de respiro. Esses poderiam ser momentos nos quais fossem aprofundadas as relações – inclusive raciais – que ligam os três países pelos quais Eudio viaja.
Assim, apesar da referência a elementos culturais de origem africana e da presença de personagens negros na obra, a possibilidade de o trabalho ser lido como metáfora para o racismo, como apontado pela sinopse do espetáculo, não parece ser devidamente explorada nem pela dramaturgia nem pela encenação. Causa também certo estranhamento a figura de Mumba, o menino moçambicano que calçará Eudio, ser representado pelo mesmo boneco de outro personagem que aparece nas cenas iniciais do espetáculo, sendo os dois diferenciados apenas pela perna amputada de Mumba. Considerando a profusão de bonecos e elementos que compõem o espetáculo, não seria interessante dispor de dois bonecos negros diferentes, ainda mais se levarmos em conta o protagonismo que Mumba adquire por ser justamente a figura que porá um fim na jornada de Eudio?
Mesmo que esses pontos pudessem ser aprofundados ou revistos no trabalho, é inegável o apuro técnico da Trupe de Truões e a importância de termos cada vez mais obras que promovam o diálogo sobre as questões, os valores e as histórias (com H maiúsculo e minúsculo) de nossa Améfrica Ladina, como diria a intelectual brasileira Lélia Gonzales. Nesse sentido, Zapato busca Sapato é uma obra que, assim como Eudio, nos convida a caminhar e a traçar os caminhos que nos levem aos nossos locais de pertencimento, sejamos nós crianças, adultos ou sapatos.