De quem retiramos a possibilidade de sonhar?

Por Diogo Spinelli
01/09/2021

“Um dia eu sonhei que eu era um cacto

Desses que tenho em casa e eu não cuido

E que mesmo sem cor, sem água

Sem ter flor pra dar

Com os espinhos tortos 'inda olha rindo

 

Vivo intacto

Vivo intacto

O cacto

 

Menina, o sonho eu acho que era um cacto

De um interior envelhecido

Que fugira do sertão na tentativa

De colher futuro farto e voz ativa

 

[...]

 

Lugar hostil de gente tão pacífica

Nordeste ficção científica

É pobre, é seca, é criança raquítica

Nordeste invenção política”[1]

 

Fechando a programação do XIV Festival Velha Joana (MT), foi apresentada na segunda-feira dia 30 de agosto de 2021 a obra O menino e o céu, do Grupo Teatro Faces. O coletivo, fundado em 2005, foi o primeiro grupo de teatro de Primavera do Leste, jovem cidade de 36 anos onde o Velha Joana é realizado desde 2007.

Em O menino e o céu acompanhamos a trajetória de um menino e seu jumento em direção ao Rio São Francisco na busca por aliviar a sede causada pela seca da região. Na verdade, acompanhamos o menino e seu jumento na jornada para encontrar pássaros que possam ajudá-los no sonho do menino de poder voar, para que assim a dupla possa chegar mais rápido até o São Francisco, já que este é tido como muito distante. Vemos, então, dois sonhos concomitantes e entrelaçados que têm como objetivo comum possibilitar a solução para uma impiedosa realidade. 

Em sua saga rumo aos pássaros – e ao São Francisco –, o menino e o jumento encontram uma série de animais pelo caminho: um sapo, um camaleão, um urubu e um par de asa-brancas. Assim como o menino e o jumento, os animais destituídos de asas sofrem com a escassez de alimento e de água, estando todos unidos por essa precária situação.    

A construção corporal do elenco como um todo é o aspecto que mais salta aos olhos ao assistir O menino e o céu. Ainda que possua boas soluções cênicas, como a passagem de tempo e de paisagem promovida pela contínua troca de lençóis estendidos no fundo da cena pela mãe do menino, a montagem é calcada principalmente em seu coeso grupo de atores e atrizes e ganha ainda mais força e simpatia junto ao público devido a sua dupla de protagonistas. Dionathan Pessoni encarna o menino com um raro equilíbrio entre inocência e travessura, enquanto Yuri Lima Cabral aproveita seu timing cômico com precisão na construção do jumento. A música, executada ao vivo por um sanfoneiro acompanhado de duas cantoras, assim como o linguajar e o sotaque adotados pelo elenco reforçam traços culturais de modo a situar o espetáculo no sertão nordestino. 

Se a produção cultural sobre e da região de um determinado período foi fundamental para que este entendimento de um Nordeste reunido através da seca fosse forjado (ou inventado, como diria Durval Muniz de Albuquerque Jr. em seu livro, já alçado à clássico, “A invenção do Nordeste”), os coletivos e artistas residentes nesta região do país há muito vêm reivindicando [e realizando] outros imaginários plurais para si. Exemplo disso foram as variadas cenas apresentadas neste ano dentro da primeira edição do projeto Cena Agora, evento promovido pelo Itaú Cultural que possuía como tema Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas.

Há de se considerar que O menino e o céu teve sua estreia em 2009, e que de lá para cá as discussões acerca da invenção do Nordeste ganharam projeção no cenário nacional. Ainda assim, e à despeito de toda a qualidade técnica que os trabalhos possam possuir, não deixa de ser incômodo pensar quais são as narrativas sobre o Nordeste que continuam e continuarão a permear a produção cultural realizada sobre ele, fora dele. E por consequência, o quanto essa produção, à despeito daquela realizada no próprio Nordeste, continua e continuará a alimentar essa única e árida narrativa no imaginário comum dos brasileiros que moram fora da região.

É o que ocorre em O menino e o céu ao se escolher localizar no Nordeste uma história de penúria e de miséria, lançando mão de um repertório cultural reducionista. O espetáculo faz uso e de traz à cena elementos que podem ser identificados como pertencentes à [uma] cultura popular nordestina, de modo a reduzir o ideário de uma região imensa e diversa a uma já desgastada e estereotipada visão do Nordeste como lugar de seca, sede e fome. Local de atraso, de pobreza, e de subdesenvolvimento, onde até os sonhos são impossíveis.

Ao se optar por matar o protagonista de sede, sem que este chegue a concretizar nenhum dos seus sonhos (antes de morrer o menino não voa, e nem chega ao São Francisco), ou ainda, ao mostrar que seus sonhos só são concretizáveis em outro plano espiritual e não nesse mundo no qual vivemos, qual a mensagem que estamos adereçando sobre e às crianças e famílias nordestinas?

Quais narrativas estamos reforçando sobre essa região e seu povo e a quê[m] elas servem? Tendo essa reflexão em mente, parecem particularmente cruéis as falas do urubu que antecedem a morte do menino: “Os sonhos matam a gente [...] o sonho de avoar matou o menino. O menino tá morto por dentro, seu jumento burro, e agorinha vai estar por fora também”.

A quem estamos privando o direito de mudar sua realidade, e em última instância, de sonhar?  


[1] Trecho de “Nordeste Ficção”, canção de Juliana Linhares presente em álbum homônimo lançado em maio de 2021.

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