Narrativas do Insílio

Por Ronildo Nóbrega
06/09/2021

Lucrécia Paco, uma das atrizes moçambicanas de maior repercussão da atualidade, dirige espetáculo sobre a descoberta de uma relação forte com o mundo espiritual. Baseado no livro homônimo de Paulina Chiziane e da médium Maria do Carmo da Silva, a obra cênica Na Mão de Deus transpõe para o palco, numa linguagem que perpassa o narrar e o mostrar, os dilemas de uma personagem que, ao ouvir sussurros incessantes ao pé e longo do ouvido, questiona-se acerca de sua existência no mundo. Por meio de uma encenação que opera aos modos dos griots, os contadores de histórias, cantores, poetas e instrumentistas africanos, Paco dispõe atores e músicos no palco como peças à serviço de uma narrativa que abraça a descoberta da mediunidade a partir da cosmovisão africana.

Dramaturgicamente, a obra coloca em cena a trajetória de Alice, uma mulher que, após visitar o monte Mpalumwe, na Zambézia, ao lado da sua irmã, passa a vivenciar um drama repleto de perturbações físicas e psíquicas. Nesse processo de autodescoberta de uma protagonista que aprende a dialogar com as vozes que antes lhe atormentavam, Paco propõe um mergulho cênico pela espiritualidade tradicional moçambicana e atualiza, de modo absurdamente poético, o livro de Chiziane e Maria do Carmo da Silva.

O espetáculo que começou como uma homenagem a Chiziane na edição de 2020 da Feira do Livro de Maputo, chega à décima quarta edição do festival mato-grossense Velha Joana a partir de uma filmagem feita pela Televisão de Moçambique. Sem perder a potência poética e o escancaramento da força despedaçante da colonização, a obra aporta em nosso país como um registro sutil do teatro e da cultura moçambicana, principalmente, da espiritualidade tradicional e dos modos como esta coloca a relação entre humanos e mortos antepassados.

Habitando um cenário que se assemelha muito de longe a uma sala de estar e usando figurinos e adereços tradicionais da cultura africana, os atores e músicos se revezam para narrar o percurso de autodescoberta da personagem que, diga-se de passagem, é marcada pelo abandono familiar, motivado por preconceitos cultural e religioso. Num contexto em que o cristianismo é a norma, Alice, ao aceitar e descobrir a sua mediunidade, passa a ser a compreendida pelos seus como uma lunática, uma mulher maluca que perdeu a sanidade.

Nesse sentido, para além de ser um espetáculo sobre a busca por respostas, a obra tematiza a opressão às diversas formas de saber sofrida pelos moçambicanos através do regime colonial que, ao contrário do que possamos imaginar, se atualiza em operações sofisticadas. Sem perder a intensidade do livro escrito à quatro mãos, o epistemicídio colonial ganha outras cores na narrativa multidimensional de Paco e, principalmente, na interpretação forte de Angelina Chavango que materializa, de modo visceral, os dilemas sofridos por Alice ao longo de sua cavalgada espiritual.

Em sua tese de pós-doutoramento sobre a literatura moçambicana, o professor Nazir Ahmed Can cunhou o termo insílio para designar um tipo de isolamento interno. Para ele, o insílio seria um exílio dentro da própria pátria, um distanciamento forçado que aconteceria como resultado da imposição de uma ideologia dominante, resultado de uma incomunicabilidade social. Este é o caso da nossa protagonista que se isola em si mesma e busca, desesperadamente, reconciliar aquilo que era com aquilo que passou a ser após os seus ouvidos se tornarem antenas receptoras de vozes antepassadas.

Trata-se de um espetáculo em que não há espaço para ambiguidades. Na Mão de Deus é uma obra que se constrói como uma água clara e transparente e que coloca, igualmente, o abandono de uma personagem que, tentando desvendar a si mesma, enfrenta o isolamento e a exclusão. Sendo assim, diante da interpretação de Nazir Ahmed Can e da adaptação exata de Paco, está claro que estamos diante de um teatro do insílio na medida em que o mesmo tematiza as agruras e as estratégias de isolamento operacionalizadas pela colonização europeia.

Paco e Chiziane são pioneiras na apropriação de gêneros ocidentais em Moçambique de modo que, arrisco afirmar, seria impossível entender a história do teatro e do romance no país sem considerar as criações de ambas. Nessa cooperação absurdamente poética, as duas acabam nos ensinado que, quando as vozes enchem o cérebro e transbordam o corpo, é preciso aprender a dialogar com elas.

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