[A Classe Viva]

Por Heloísa Sousa
15/09/2021

O grupo Teatro Faces Jovem surgiu em 2011, no Mato Grosso, na Escola Municipal de Teatro – Projeto Teatro Faces, reunindo jovens de diferentes comunidades através de projetos sociais que traziam a oportunidade de aproximação com a prática teatral. O grupo foi crescendo ao longo dos anos e elaborando vários processos criativos colaborativos, entre eles o espetáculo “O Acordo” apresentado na programação do XIV Festival Velha Joana.

No início do espetáculo, nos deparamos com várias carteiras enfileiradas e típicas de uma sala de aula escolar. Somente essa imagem, já me trouxe a memória a obra “A Classe Morta” do encenador polonês Tadeusz Kantor que mistura atores, atrizes e bonecos em uma coralidade mórbida e decrépita que tenta, com muito esforço, aprender coisas simples por repetição. No entanto, quando atores e atriz de “O Acordo” entram em cena e a encenação começa a se desenvolver, percebo que ela é quase diametralmente oposta à obra de Kantor; pois, o espetáculo do Teatro Faces Jovem pulsa vivacidade, heterogeneidade, indignação e afirmação. Se na obra de Kantor, as figuras parecem obedecer incessantemente até formar um contorno de paisagem vestida de preto e organizada nas carteiras; na obra em questão nesta crítica, os corpos sugerem desobediência continuamente, sustentam inúmeros conflitos e fazem as carteiras parecerem verdadeiras barricadas.

A gravação exibida no festival possuía algumas problemáticas em relação a qualidade sonora, o que dificultava a compreensão de alguns trechos da narração e das falas dos atores e atrizes. Ainda assim, pela abordagem dramática e pelo ritmo frenético adquirido pelos diálogos propostos em cena, era possível alcançar os conflitos que sustentam a obra. Uma sala de aula escolar, com estudantes adolescentes, se depara com uma situação comum: o professor faltou e não haverá aula naquele horário. No entanto, o líder de sala que traz essa notícia aos demais, sinaliza também que o diretor da escola ordenou que todos devem aguardar a finalização do horário em sala de aula e não estão liberados para ir para casa. Uma revolta se instaura. Ao questionar o porquê de não poderem ser liberados mais cedo, a sala de aula vive uma cisão entre aqueles que querem seguir as ordens do diretor e aqueles que a questionam e sugere uma desobediência. A situação é corriqueira e dificilmente alguém do público não deve ter vivenciado algo semelhante, seja na qualidade de alune ou na qualidade de professor/professora.

Com uma encenação simples, onde os elementos cênicos que enfatizam o espaço proposto resumem-se às carteiras e ao fardamento que compõem os figurinos, os corpos jovens em cena reorganizam a si mesmos e aos objetos continuamente, mudando a paisagem imagética a cada conflito, mesmo que esta siga uma linearidade de cores e formas. A força da encenação traduz-se na potência da dramaturgia e na capacidade expressiva de todos os atores e atrizes em cena, jovens entre 18 e 24 anos que preenchem o espaço cênico com tal presença, que torna difícil se perder dos diálogos e não se sentir imerso nas situações vivenciadas pelas personagens. A jovialidade do elenco e a ausência de qualquer exacerbação técnica comum a certos atores e atrizes, acaba por capturar o espectador em uma abordagem cênica crua, viva, dinâmica e lúdica. Minha memória faz unir a experiência de assistir essa obra à outras duas encenações que pude acompanhar durante a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo em 2019, onde adolescentes e jovens também compunham o elenco e traziam discursos pertinentes às suas vivências e aos seus corpos, reiterando lugares de fala em montagens cênicas. As obras eram: “Paisagens para não colorir” do Teatro La Re-Sentida (Chile) e “Cinco Peças Fáceis” de Milo Rau (Bélgica), ambos com críticas publicadas por mim neste site.

O que observamos em “O Acordo” é a uma reencenação dupla. Os atores e atrizes encenam uma sala de aula, e as salas de aula em si reencenam as situações de uma sociedade para além dos muros da escola. Esse é, inclusive, um dos propósitos do ambiente escolar, nos colocar em interação para que possamos aprender a conviver e (re)estruturar uma sociedade juntes. A sala do espetáculo é uma microcomunidade e é inevitável não comparar a situação posta em cena com as tensões políticas vividas no Brasil. A polarização estabelecida é mobilizadora de conflitos contínuos que conferem ritmo a encenação, flerta com uma comicidade sagaz e inteligente, tornando todas as diferenças passíveis de se tornarem ruídos nas relações. A coerência desses ruídos contínuos se dá, justamente, pela jovialidade das personagens. A necessidade juvenil de autoafirmação contínua, somada a uma insegurança com relação a própria individualidade faz com que as personagens questionem umas as outras repetidamente, quando, na realidade, estão pondo a si mesmas em questão.

Nesse sentido, pode parecer exagerado o tom das vozes do elenco; mas, basta recuperar nossas memórias de adolescência ou ter experiência como professor/professora para saber da verossimilhança dessa escolha na encenação. Falar mais alto é um modo de afirmar seu discurso, quando a argumentação ainda está sendo ensaiada; e é também uma forma de fazer com que os conflitos possam se sobrepor. O diálogo é uma habilidade que vai sendo adquirida aos poucos nos processos de formação do sujeito e as violências, repetidas das cenas vistas nas mídias ou no cotidiano, por vezes, tornam-se instrumentos de afirmação também.

A encenação do Teatro Faces Jovem, apesar de forte cunho político, não se aproxima nem das teorias e práticas de Bertolt Brecht nem de Augusto Boal, nomes importantes do teatro que parecem sempre vir a mente quando a política é posta em questão no teatro. “O Acordo” é uma encenação onde as atuações se propõem realistas, embora a metonímia do cenário possa se relacionar com uma estética simbolista. Se em termos técnicos e cenográficos, a obra parece consideravelmente precária, principalmente quando comparada com às encenações que citei acima de Milo Rau e do Teatro La Re-Sentida, o espectador brasileiro pode notar essa precariedade com outra mirada. A limitação de recursos não é uma novidade para o cenário teatral brasileiro e, também não se torna limitação para nossas elaborações discursivas, e aí reside a potência maior da obra e do grupo. “O Acordo”, até então, é uma das obras mais interessantes que eu já pude assistir, elaborada com um elenco tão jovem. E que não apenas se destaca pela proposta da encenação em si e pela força e precisão da dramaturgia, mas por sua possibilidade de alcance. Fico imaginando o quanto a peça é acessível enquanto linguagem e discurso para jovens do ensino médio, o quanto as problemáticas abordadas ecoam nesse universo e ao mesmo temo vibram fortemente nas relações para além dos muros da escola.

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