Festal: um convite para girar

Por Diogo Spinelli
03/10/2021

Como abrir uma roda na virtualidade?

Como convidar uma comunidade a conhecer a si mesma, e a tomar parte em suas histórias, músicas, danças, ritmos? A vivenciar a si mesma? A colocar a roda em movimento?

A girar?

Estas foram algumas das questões que permeavam meu pensamento nesta última quinta-feira, dia 30 de setembro de 2021, quando teve início a programação da 6ª edição do Festal – Festival de Artes Cênicas de Alagoas.   Esta edição – que segue sempre de quinta a domingo até o dia 31 de outubro e está sendo realizada de forma gratuita e online devido à pandemia da COVID-19 – convida o público a participar em cinco giras distintas, realizadas uma a cada semana, sendo a primeira delas sobre Cultura Popular.

A proposta de alargar o Festal no tempo, espalhando sua programação em vez de concentrá-la como ocorre normalmente nos festivais, faz com que o formato adotado funcione como uma estratégia de mediação com o público, convidando-o a apreciar as obras pelas lentes do tema de cada uma das giras. Esse convite é reforçado pelo fato de que, antecedendo as apresentações cênicas de cada semana, cada gira é aberta por uma mesa redonda que visa contextualizar seu tema na conjuntura do estado de Alagoas. Dessa maneira, a primeira atividade da 1ª Gira do Festal 2021 – e do festival como um todo – foi a mesa redonda Alagoanidades: as manifestações de povos e suas cenas, com a presença do Mestre Canarinho das Alagoas e mediação de Linete Matias.

Escutar em uma transmissão ao vivo pela internet às memórias e às cantorias de Mestre Canarinho, mestre do Guerreiro Leão do Norte, evidencia como é falacioso o pensamento de que a Cultura Popular seria composta por tradições rígidas e imutáveis. Ao contrário, essas manifestações artísticas que desafiam aqueles que tentam categorizá-las (já que são avessas à binarismos), atualizam-se de forma tão orgânica e contínua que, se ao olhar menos atento podem parecer estanques, na verdade possuem a habilidade de congregar a um só tempo o que há de mais ancestral e contemporâneo.

Dando continuidade à gira, na noite de sexta foi exibida a contação Histórias elevadas, de Toni Edson e Elaine Neto. Do alto de pernas-de-pau, a dupla de artistas conta duas histórias africanas: a de Olukwe, de origem nigeriana, e a de Lungile, da África do Sul. A escolha por essas duas histórias denota a importância de se apresentar outros imaginários aos públicos infantis, sobretudo aqueles que fazem parte de sua própria cultura, mas que comumente lhe são negados.

A figura de Olukwe, homem que não cessou de trabalhar continuamente até ser transportado para a lua, encontra reverberação nos corpos dos contadores, que para manterem-se em equilíbrio precisam estar incessantemente em movimento. Por um lado, essa necessidade de movimentação constante se configura como um fator de distração, impossibilitando inclusive maiores nuances nas narrações dos contadores; por outro, essa elevação faz com que a dupla adquira certo caráter sobre-humano, assim como o fazia a beleza de Lungile, como se por seus corpos e vozes amplificados possam falar todos os ancestrais do continente que se encontra do outro lado do oceano.

Nesse sentido, a escolha de se realizar a gravação da contação tendo como paisagem de fundo a orla de Maceió reforça ainda mais o vínculo entre América e África, separadas e unidas pelo Atlântico. A presença da música permeando as narrações também reitera essa relação, além de contribuir para dar dinâmica às histórias. Entre as canções, todas composições originais, aquela cantada no final da história de Lungile chama especial atenção por parecer ser composta por diversos ditados populares entremeados, retomando assim outro aspecto das práticas da tradição oral.

No dia seguinte, foi apresentado o espetáculo Lendas, do coletivo circense Os Mutantes. Talvez ainda influenciado pela fala de Mestre Canarinho na mesa de abertura, ao assistir à obra percebi pela primeira vez a similitude entre os formatos dos folguedos e dos circos tradicionais, já que ambos são constituídos por uma sequência de figuras que entram, brincam/fazem seu número, e se despedem, sem que haja necessariamente uma causalidade entre suas aparições. Esse formato, que está presente nos Cavalos-marinhos pernambucanos, nos Reisados potiguares, e, pelo que pude apreender da fala de Mestre Canarinho, no Guerreiro Alagoano, é também o adotado em Lendas.

Assim, os integrantes d’Os Mutantes revezam-se com destreza em números acrobáticos, de equilíbrio, dança e contorcionismo tendo como inspiração lendas do folclore brasileiro como Boitatá, Curupira, Lobisomem e Vitória-Régia. Apenas parte destes números nos é introduzida de forma nominal através da trilha sonora – sendo o Curupira o único a possuir uma descrição sobre si –, o que faz com que os números que não são identificados apareçam deslocados na dramaturgia geral do trabalho.

Ainda nesse sentido, apesar de o início do espetáculo sugerir a existência de uma trama na qual um amuleto foi roubado por caçadores e precisa ser recuperado para efetivar o salvamento a floresta amazônica – sendo esse o mote para convocar os seres fantásticos do folclore daquela região – essa narrativa perde-se no decorrer da obra, não sendo retomada, tampouco concluída. Esse contexto nos é introduzido pela figura de um Pajé, sendo constante a figura de indígenas no decorrer da obra, através principalmente da apresentação de números de dança parafolclórica que entremeiam as demais atrações.

Apesar de compreender a intenção legítima do coletivo em localizar essas lendas como pertencentes às nossas culturas originárias, a representação dos indígenas no trabalho gera um questionamento acerca dos riscos de uma folclorização e uma generalização da figura do “índio”, associando-a a um universo fantástico que pode alçá-la também à categoria de lenda. Como reforçar a presença das culturas originárias em nossas obras sem folclorizá-las? Essa me parece uma questão que aqueles que trabalhamos ou flertamos com a cultura popular não podemos deixar de enfrentar.      

A terceira obra a ser apresentada nesta gira, e que continua esse processo de tensionamento em relação ao seu tema, foi Guerreiro Alagoano: territórios em disputa, do Corpo Cênico de Teatro da UFAL, projeto vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Alagoas. Possuindo um caráter iminentemente metalinguístico tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, o espetáculo se estabelece a partir da gravação de uma reunião de um grupo de artistas-estudantes-pesquisadores via Google Meet no desenvolvimento de sua investigação acerca do tradicional folguedo de Alagoas.

Em cerca de meia hora, a encenação de Telma César e Marcelo Gianini consegue trazer à cena com bastante fluidez a complexidade e a pluralidade de questões e problemáticas existentes na tentativa de se realizar o trânsito entre as esferas da Cultura Popular e da Academia – principalmente quando nos damos conta de que, apesar de nos últimos anos acompanharmos um desejo cada vez maior de trazer práticas contra-coloniais para a Academia, ainda permanecem operantes um sem-número de armadilhas que fazem com que nossa produção de conhecimento siga se perpetuando colonizada e colonizadora.

Estão presentes na obra, de maneira crítica e irônica, a dificuldade de se tentar categorizar as manifestações da Cultura Popular a partir do jargão acadêmico, a discussão sobre os autores e as referências bibliográficas necessárias para referendar essas manifestações, a noção equivocada de que os estudos acadêmicos seriam responsáveis por resgatar a cultura e por salvá-la do esquecimento, as questões relativas à subsistência e à falta de incentivo econômico e simbólico dos brincantes, dentre inúmeros outros impasses que perpassam aqueles que orbitam nessas duas áreas, ou que tentam construir pontes entre esses dois universos que foram e seguem sendo propositadamente apartados. 

Por mais que no invólucro ficcional do espetáculo o grupo de estudantes pareça genuinamente interessado em investigar o Guerreiro Alagoano, fica evidenciado o alto grau de ensimesmamento de certa produção acadêmica que – ainda que revestida de palavras de gratidão e de bibliografias decoloniais – se encanta consigo mesma e com suas supostas contribuições à sociedade, em vez de estar realmente disposta a ouvir e a trocar com ela. O maior exemplo disso reside no fato de os artistas-pesquisadores seguirem bradando sobre a potência de suas ações (em potencial), sem que tenham visitado ou se envolvido diretamente com os brincantes do folguedo, dispensando inclusive a entrevista que seria realizada com uma Mestra que intencionalmente permanece não nomeada no espetáculo, denotando a falta de envolvimento dos estudantes com o objeto estudado – e, principalmente, com as pessoas que dão vida a esse objeto.

Ao mesmo tempo, ao centrar a obra nesse ponto de vista, estando de fato ausentes do espetáculo os fazedores do folguedo e permanecendo as informações sobre esse relegadas a uma primeira camada mais superficial – aquela à qual os personagens têm acesso –, o espetáculo acaba por, contraditoriamente, reproduzir em certo grau os mecanismos sobre os quais centra suas críticas. Onde estão os brincantes do Guerreiro nessa discussão para que realmente possa se estabelecer a disputa que faz parte do subtítulo da obra?

Contudo, esse paradoxo é um dos aspectos mais interessantes do trabalho, sobretudo, pela sua não-obviedade. Sua existência nos permite refletir como, seja no aspecto artístico ou não, mesmo quando temos a intenção de visibilizar determinada questão, estamos sempre na iminência do risco de criarmos um chapéu sem gente – expressão utilizada na obra para sintetizar o pensamento de que o poder público se utiliza dos elementos do Guerreiro Alagoano para fins políticos ou turísticos, mas não se importa em subsidiá-lo ou valorizá-lo.

Apesar da obra conter o nome do folguedo em seu título e de desenvolver sua dramaturgia sobre ele, o que nos revela a real ausência dos brincantes em um elenco formado por artistas-pesquisadores-universitários? E, se na gira que tem como tema Cultura Popular, um espaço na programação foi ocupado por um espetáculo de um projeto de extensão universitária, não fosse a participação do Mestre Canarinho das Alagoas na mesa de abertura da gira, onde estariam os brincantes de Guerreiro Alagoano na grade do Festal? Onde estão os brincantes e os folguedos nos demais festivais e nos outros espaços destinados às artes cênicas em geral?

Essas e outras questões, antes de figurarem neste texto, puderam ser discutidas com mais carne e mais olho no olho – ainda que mediado pelas telas – no bate-papo realizado na tarde do domingo dia 03 de outubro. Reunindo os artistas da gira, a crítica e o público, essa é outra das ações propostas no formato desta edição do Festal que valorizam a formação de público, bem como o fortalecimento da cena alagoana.

Esse é também um espaço que possibilita outro tipo de trocas e que retoma a sensação de coletividade, neste momento em que a reunião presencial entre artistas e público começa a dar seus primeiros passos de volta à normalidade pré-pandêmica, ainda que essa realidade apareça como uma alternativa mais palpável em localidades que possuem um maior número de equipamentos culturais, bem como um maior incentivo à cultura.

Se a vontade do regresso aos eventos presenciais já se fazia presente nos dias anteriores, esse desejo só foi aumentado pelo show de Zeza do Coco, que finalizou a gira em tom festivo, em meio a seus causos e cocos.

Nos quatro dias desta primeira gira, o Festal trouxe à tona a multiplicidade e a complexidade da Cultura Popular, com obras e ações que expõem tanto as sabedorias e as alegrias quanto as contradições e as disputas que perpassam esse movediço e emaranhado território. Sabendo que ainda há muito pela frente, só nos resta desejar que as próximas giras possam movimentar tantas questões quanto essa primeira, e que as artes cênicas alagoanas possam, dentro e fora do Festal, continuar circulando e girando cada vez mais.
 


Foto de capa: arte de divulgação da obra Guerreiro Alagoano: territórios em disputa.

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