Que bom te ver vivo!

Por Quemuel Costa
13/06/2022

O Trema! é um festival de teatro que acontece em Recife (PE) e completou dez anos em 2022, após três anos sem acontecer (primeiro por falta de recursos e depois por conta da pandemia do covid-19). Estive na cidade durante a terceira semana de abril (19-23) para acompanhar o Lado A do festival e assisti a maioria dos espetáculos dessa primeira mirada. No total, acompanhei oito espetáculos, entre dança, ensaio aberto, peças locais, nacionais e internacionais, e conheci quatro teatros e espaços culturais da cidade.

Na divulgação da 7ª edição do Trema! há uma estética e afirmação a partir dos binômios morte/vida, princípio/fim. A capa do programa do Lado A traz a frase “o príncipio do fim” e a do Lado B “todo fim é um princípio em si”. E se por um lado há um quê de revanche nisso por, nas palavras de um dos organizadores, o festival já ter sido dado como morto por terceiros: “Fomos dados como mortos em 2018. Acreditavam que o festival não mais aconteceria e muito disso se deu por perseguições institucionais”, complementou Pedro, à frente da organização do evento"*, ao olharmos a programação, os corpos, as estéticas e os assuntos presentes nos espetáculos, há também a ideia do fim enquanto saída, enquanto alternativa. A programação inicia e termina com manifestos. Além de ser inteiramente marcada por eles, ainda que a palavra “manifesto” não esteja em todos os títulos. Que fins e princípios são imaginados e ensaiados quando corpos negros, LGBTQIA+, deficientes e marginalizados ocupam a cena? Que fins e princípios essas vozes histórica e estruturalmente marginalizadas evocam?

O primeiro espetáculo que assisti no Trema foi “Encantado”, criado por Lia Rodrigues (RJ). Ele inicia com vários cobertores enrolados perto da boca de cena, que formam um cilindro comprido. Eu vejo uma cobra. Os bailarinos entram e começam a desenrolar o cilindro. Ou estão ajudando a cobra a trocar de pele? Mais uma vez a relação fim-princípio me vem à cabeça. As cobras trocam de pele porque estão em crescimento, trocam de pele para se expandir. Como trocar/expandir a ideia de Brasil, para que, diferente do projeto colonial e neoliberal que nos foi imposto, tenhamos um país onde a existência de todos esses corpos que fazem a programação do festival seja possível? Essa necessidade se torna ainda mais explícita quando observamos que as duas apresentações do primeiro dia do Trema! trazem a luta dos povos originários para a cena. “Involuntários da Pátria” de Fernanda Silva (PI) e Sônia Sobral (SP), utiliza o texto da aula pública do antropólogo Eduardo Viveiro de Castros em defesa dos povos indígenas. E a trilha sonora de “Encantado” é composta por trechos de músicas dos povos Guarani Mbya do Brasil, da aldeia de Kalipety do território indígena Ténondé Porã cantadas e tocadas durante a marcha dos povos indígenas contra o marco temporal em Brasília em 2021.

Se ser um ponto fora da curva na escassez de festivais teatrais que domina o Nordeste já é motivo de comemoração suficiente, o que mais me chama atenção no Trema! é o desenho político que se faz em sua programação. O quanto, por nenhum momento, o festival se aliena do Brasil em que é realizado e nem traz as temáticas indígenas, negras e feministas como exceções, mas como predominantes, como verdadeiros faróis na curadoria. Apesar disso, à primeira vista, tenho a impressão de que há uma ausência dos corpos indígenas, a nível nacional e histórico, o que reflete também nas artes das cenas. Suas vozes, reivindicações e lutas aparecem através da trilha sonora de “Encantado”, além do texto e da performer de “Involuntários da pátria”. Essa presença indígena, enquanto tema, produz discussões e novos imaginários a respeito desses povos e do próprio país, mas, por ora, isto é o suficiente?

Entre os espetáculos do Lado A, três deles se encaixam sob o que se pode chamar de estéticas negras e/ou teatros negros: “Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré” do grupo São Gens de Teatro; “Re_luzir” de Marconi Bispo e “Meia noite” de Orun Santana, todos de artistas pernambucanos. Escrevo “estéticas” e “teatros” no plural porque apesar de todos partirem das vivências de corpos negros, é muito evidente o quanto não há uma cristalização ou fórmula quanto a maneira de levar essas vivências para os palcos. Dentre os três, “Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré” é o único que não é um solo. Apesar disso, o espetáculo se constrói através de ações solitárias, em que apenas um ator está em cena por vez, o que acaba por gerar uma obra focada na individualidade, trazendo poucas cenas em seu lugar de maior força: o coletivo. É um espetáculo com seis atores, mas que tem tantas cenas com apenas uma pessoa quanto as dos demais solos apresentados no Trema!. Além disso, o espetáculo do São Gens nos permite questionar as maneiras de elaborar e representar violências em cena, uma vez que em alguns momentos sua representação se torna quase intragável. Essas escolhas, por vezes, parecem fazer com que a obra caia na armadilha de reiterar a violência que denuncia. Em dado momento, a dramaturgia afirma que “(...) num texto marginal, me vejo!”. Com poucos momentos de respiro ou de contraponto no espetáculo, eu me pergunto: em que mais posso me ver, enquanto corpo marginal, além da violência e da mazela?

Como que diante de um espelho, é impossível não se identificar com as temáticas das peças do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol? Nas peças “Tijuana” e “Veracruz nos estamos deforestando o Como extrañar Xalapa”, ambas parte do projeto "La Democracia en Mexico (1965-1985)", os artistas Lázaro Gabino Rodríguez e Luisa Pardo denunciam e expõem as fragilidades da democracia nos governos mexicanos. A pobreza, a impossibilidade de sobreviver com o salário mínimo, o desmatamento e os assassinatos de ativistas e jornalistas são algumas das denúncias que inevitavelmente aproximam o público brasileiro do Teatro Apolo das obras com caráter documental. Ao escrever este parágrafo, lembro do poema de Ferreira Gullar que diz “Nós, latino-americanos (...) Somos todos irmãos/ não porque tenhamos/ o mesmo braço, o mesmo sobrenome:/ temos um mesmo trajeto/ de sanha e fome./ Somos todos irmãos/ não porque seja o mesmo sangue/ que no corpo levamos:/ o que é o mesmo é o modo/ como o derramamos”.

            O Trema! é o primeiro festival presencial de teatro que frequento após o isolamento social. Antes dele, a minha última experiência presencial com festivais havia sido no Festival Internacional de Artes Cênicas Casa da Ribeira (FICA), em 2019. Durante os aplausos do primeiro espetáculo que assisti na programação lembro de ter pensado “que bom voltar ao teatro”. Nos primeiros dias, eu estranhei os teatros não estarem lotados, afinal são dois anos trancados em casa esperando por esse momento, certo? Penso que talvez seja porque é dia de semana, porque muita gente não tem dinheiro para ir ao teatro (mesmo com o ingresso a R$10, o brasil do messias é para poucos), porque muita gente ficou esperando ouvir o burburinho sobre o festival antes de se locomover até ele… Penso tudo isso apenas para afastar da minha cabeça o pensamento de que talvez uma parte do público que frequentava os teatros até 2020 não volta mais, ou volte com cada vez menos frequência. E não falo aqui apenas da quantidade absurda de gente que perdemos pela necropolítica bolsonarista, mas também daquelas pessoas que se acostumaram tanto a estar em casa que agora a ideia de sair para ir ao teatro não as anima. Lembro de uma conversa que tive com Heloísa Sousa (oi, colega de Farofa Crítica!) há algumas semanas em que ela me dizia sentir que a cena de Natal estava muito parada e que isso a preocupava porque gerava um movimento muito semelhante no público. O público se acostuma a ficar em casa, a não ter nada cultural para fazer na cidade. Se acostuma com a ausência do teatro. Felizmente isso foi mudando ao longo dos dias e as plateias foram lotando, a ponto de ficar gente sem conseguir entrar. Felicidade de casa cheia.

É importante reforçar o quanto o conceito de fim na 7ª edição do Trema! não aparece como algo fatalista, mas enquanto etapa para o início de algo novo. É a destruição abrindo espaço para novas construções. A curadoria parece partir de um movimento propositivo, de um movimento de reencanto. De uma ideologia que busca dar fim a um mundo (capitalista, colapsado) para um novo (que mundo é esse que queremos e buscamos?). Toda essa lógica de fim/início me lembra um trecho de “Ideias para adiar o fim do mundo (2019)”, do líder indígena Ailton Krenak, em que ele afirma que contar histórias é adiar o fim do mundo: “E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.”* Neste sentido, talvez o Trema! funcione como uma barricada contra o fim do mundo. Mas aqui, este mundo, cujo fim estaria sendo adiado, não seria dentro de uma lógica capitalista, violenta e injusta, mas um outro mundo que já vem sendo anunciado pelas vozes que estão apartadas do centro, um mundo que vem sendo construído e evocado nas margens. Um mundo que vem insistindo em nascer ainda que este mundo que habitamos venha atualizando suas estruturas de opressão e pareça longe de ruir. Apesar desse eixo norteador na curadoria não ser à toa e também, em certo nível, atender às novas demandas do mercado da arte, no qual depois de muitos anos de luta e reivindicação há cada vez mais uma ocupação da cena por corpos marginalizados e dissedentes, é com a sensação de reencanto por uma outra lógica de vida e presença que digo: que bom te ver vivo, Trema!

 

*MACAMBIRA, Germana. Trema! festival retorna após hiato distante dos palcos. Folha de Pernambuco, 2022. Disponível em: https://www.folhape.com.br/cultura/trema-festival-retorna-apos-hiato-distante-dos-palcos/223/812. Acesso em: 02 de maio de 2022.

 

*KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1ª edição. São Paulo: Companhia das letras, 2019. 27p.

 

 

 

 
Clique aqui para enviar seu comentário