Por Quemuel Costa
21/06/2022
Entro em uma sala pequena com as paredes e o chão cobertos por um material branco. O performer está de joelhos em um canto da sala, bem próximo de onde o público se senta. Apesar da proximidade, seu olhar não se concentra nas pessoas que entram, é como se sua concentração e sua visão estivessem focadas para algo além da pequena sala branca. No chão dela, no lado oposto ao do dançarino, está uma pilha de cabelos sintéticos com textura crespa. De joelhos e de maneira dilatada, Leandro Souza (SP) repete as frases “Am I black enough for you? I got to stay black enough for you”.
Aos poucos o dançarino vai tirando pedaços de cabelos da pilha e os espalhando pela sala enquanto repete as frases supracitadas. Nesse primeiro momento me chama a atenção o cuidado com que ele manuseia os cabelos. É um detalhe, mas a primeira vez que ele coloca as mãos dentro da pilha de cabelos me lembra das reclamações que já ouvi de alguns amigos pretos sobre pessoas que tentavam fazer carinho em seus cabelos crespos e/ou cacheados como se estivessem lidando com cabelos lisos e acabavam por machucá-los. A interação de Leandro com os cabelos não se mantém nesse lugar delicado, inclusive ele chega a arrastá-los pelo chão, mas contraditoriamente ainda assim há um nível de cuidado na maneira como ele os manipula.
Foto: Bruta Flor Filmes
As frases inicialmente ditas em inglês vão aos poucos tendo algumas palavras substituídas pelo equivalente em português, gerando assim frases bilíngues. “Am I preto enough for you? I got to stay preto enough for you”. As frases repetidas são do refrão de uma música de Billy Paul (de onde também tirei o título deste texto), mas em um primeiro momento o uso do inglês parece trazer outras leituras e remeter a constante comparação do movimento negro brasileiro ao movimento negro norte-americano, como para alguns esse primeiro deveria se inspirar nos protestos mais radicais deste último durante os protestos do Black Lives Matter... Ou ainda a inegável influência - ou colonização? - que herdamos de culturas estrangeiras, incluída nisso a arte. Fato é que a introdução de palavras em português gera uma quebra e um ruído no ritmo da fala. Algo é deslocado quando as palavras em português, ou melhor, em pretuguês, como definiu Lélia Gonzalez, são ditas pelo dançarino.
Como um mantra e quase nos conduzindo a um estado de transe, o dançarino vai repetindo a pergunta em um ritmo tão marcado e certeiro que mesmo dias após assistir a performance, ainda consigo rememorar a cadência de sua fala. Enough for you. Suficiente. Suficiente for you. Através da repetição, ele nos vai levando de encontro aos nossos imaginários sobre o que é um negro, sobre o que é ser suficiente em uma estrutura racista e sobre o que é arte contemporânea. O que é esperado de um artista negro? O que é esperado da dança contemporânea? Quais signos e códigos estão associados à negrura e ao contemporâneo? Quem tem poder sobre esses imaginários e expectativas?
É interessante perceber que mesmo fazendo uma pergunta e estando muito próximo do público, Leandro não dirige seu olhar nem sua ação para as pessoas presentes. Apesar de em alguns momentos ficar a centímetros do dançarino, eu sinto que sua ação e sua fala independem da minha presença. Não há interação. Há inclusive um certo distanciamento. Ele parece direcionar suas questões para algo ou alguém além da sala. Não necessariamente para os indivíduos presentes. Então para quem o dançarino pergunta se é negro e contemporâneo o suficiente? Para uma estrutura? Para uma lógica de mercado? Para os “eles” mencionados no título da obra?
Ao questionar se é negro e contemporâneo o suficiente “for you”, o dançarino tensiona um lugar de objeto e subalternização. Isso aparece de maneira mais forte se considerarmos que em mais da metade da obra, ele está ajoelhado, agachado ou se arrastando. Em uma posição abaixo do público. Citada por Grada Kilomba (2019), bell hooks diz que “sujeitos são aqueles que ‘têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas histórias’” (hooks apud Kilomba, 2019). Como objetos, no entanto, nossa realidade é definida por outros, nossas identidades são criadas por outros, e nossa “história designada somente de maneiras que definem (nossa) relação com aqueles que são sujeitos” (hooks apud Kilomba). Diante disso, Grada Kilomba demarca a escrita como um ato político, pois é através dela que se torna sujeita, deixando o lugar de objeto, pois escreve sobre si mesma em vez de ser descrita. É ela quem passa a contar sua própria história. O mesmo paralelo pode ser feito com a dança de Leandro de Souza, na qual apesar de reencenar o lugar de objeto e subalterno, ele o faz de maneira elaborada, a fim de desestabilizar essa lógica. E é nesse gesto de elaborar uma dança que “provoca reflexões acerca de uma lógica do ‘lugar específico’, pelas quais operam instituições artísticas e às quais corpos racializados e subalternizados são relegados” que a obra é, também, uma ação de tornar-se sujeito – ou ao menos uma tentativa disso, uma vez que continuamos submetidos às lógicas e demandas do mercado de arte. Até onde é possível tornar-se sujeito estando sujeito às instituições artísticas?
Depois de reunir novamente todo o cabelo sintético que espalhou pela sala, o performer fica em pé e os manuseia junto ao corpo. Ao longo da performance, ele descalçou os pés e tirou a roupa. Agora ele está nu enquanto balança a pilha de cabelos no ar. Pedaços de cabelo caem pelo chão e os que ainda fazem parte da pilha parecem se mover mais livremente. As palavras “contemporâneo” e “contemporary” aparecem mais fortemente. “Am I contemporâneo enough for you? I got to stay contemporâneo enough for you”. A iluminação pinta a sala de azul e o movimento gerado pela luz junto a trilha sonora me lembra o mar. Leandro larga a pilha de cabelos no chão e sai da sala. Abandona este lugar onde durante quarenta minutos ele estava perguntando se era negro e contemporâneo o suficiente “for you”. Enquanto a música e a iluminação permanecem como ele as deixou, algumas pessoas do público olham para a porta, parecem esperar que ele retorne para dizer algo ou receber aplausos. Mas o performer não retorna. Eu também me levanto e saio. Não retornaremos para a subalternização.
REFERÊNCIA
Kilomba, Grada. Memórias da plantação - episódios de racismo cotidiano. 1ª edição. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. p. 28.