Por Heloísa Sousa
26/06/2022
Tenho cada vez mais pensado sobre tudo o que não é dito em uma experiência estética, sobre a fala explícita como uma camada fina que poderíamos nomear de superfície (da obra?) e que cobre todo um emaranhado de associações possíveis da qual essa mesma experiência é também um dispositivo. Isso não quer dizer que a experiência não seja algo por si mesma, que a materialidade da cena seja apenas disparo para discursos. Não. Mas, junto com esse tecido epitelial que excita nosso olhar na cena, existe uma série de sistemas complexos operando por todas as direções e que também podem ser considerados.
Dias antes de assistir ao espetáculo, estava em uma livraria em São Paulo e me deparei com o livro “Vale da Estranheza: Fascínio e Desilusão na Meca da Tecnologia” de Anna Wiener, olhei a capa e pensei “deve ter inspirado a peça”. Não costumo ler muito sobre a obra antes de assisti-la, espero que ela dialogue comigo por ela mesma. A peça não é inspirada no livro, apesar de tratarem sobre assuntos semelhantes. Wiener constrói uma narrativa que apresenta um retrato da lógica das startups no Vale do Silício; enquanto o “Vale da Estranheza” do grupo alemão Rimini Protokoll se debruça sobre a teoria do professor japonês Masahiro Mori. Desse uncanny valley, conhecia o primeiro termo já citado pelo psicanalista Sigmund Freud e, também, pela escritora, Susan Sontag. É nesse estranho familiar, nesse desconforto ou inquietação que repousa algumas abordagens e teorias que problematizam nossas relações de empatia.
Em 1970, o cientista Mori identifica que quando nos deparamos com robôs semelhantes a humanos temos uma certa empatia por eles, até o ponto do vale da estranheza, onde o excesso de semelhança nos causa repulsa, semelhante a quando nos deparamos com um corpo morto. É um ponto entre ser muito parecido com um humano, mas ao mesmo tempo, não ser parecido o suficiente para que a empatia permaneça.
Eu desconhecia essa teoria. Portanto, narrarei abaixo a minha experiência com a obra que parece replicar a pesquisa teórica feita pelo grupo para criação de “Vale da Estranheza”.
Foto: Guto Muniz.
Entro no teatro e me deparo com um robô, com características humanas, sentado em uma cadeira e com uma tela de projeção ao lado. Minha repulsa, na realidade, já se instaura no instante em que me sento na poltrona da plateia. Primeiro pelo desconforto em ver, mais uma vez, um ator diante de mim preparado para me dizer algo sem qualquer artifício teatral que faça aquilo parecer mais do que uma fala unilateral – não existe mais teatro, radicalmente pensei. Fiquei me sentindo conservadora em ansiar por personagens, cenários, qualquer coisa que excitasse os meus sentidos com imagens reorganizadas do mundo. Segundo que nem era um ator, mas um robô. Aqui, novamente, o vacilo das palavras que não alcançam os sentidos reais que se desejam e parece que uma coisa não pode se transformar na outra. Mas, poxa, um robô? Não bastasse eu precisar ficar sentada por quase uma hora ouvindo um ator sentado me dizendo qualquer coisa, esse ator ainda nem era de verdade? Terceiro que nem falaria meu idioma. Ponto crucial de empatia, a língua. Um ator que não é de verdade, que é um robô e que ainda vai falar em outro idioma – talvez alemão – e eu ainda ficarei sentado ouvindo por quase uma hora. Não havia possibilidades disponíveis para que meu corpo começasse a viver essa experiência com certa tranquilidade.
Então, o robô começa a falar em inglês. Agradeço, tiro meus fones de ouvido para tradução simultânea e escolho tentar entender a peça no idioma original. Por sorte, o robô fala de modo muito articulado, pausado, com linguagem acessível. Ousado, conseguiu romper, de algum modo, com a barreira do idioma.
O robô começa a contar um pouco de sua história e de algumas teorias que atravessam sua condição robótica. Parece que ele está me explicando exatamente que tipo de sensação eu tenho ao encará-lo ou como nossa relação pode se dar. O robô é uma cópia física do escritor Thomas Melle, que aparece na projeção. Ao longo da peça, somos apresentados tanto à feitura do robô em si, quanto as questões que inquietam o escritor nas relações entre os seres humanos e as próteses ou outros artifícios computacionais. Talvez a imagem que minha memória gravou melhor seja do próprio robô nos questionando em que medida ele é, de fato, tão diferente da gente. Já que temos mecanismos muito semelhantes.
A questão é que, a obra se desenvolve de modo a criar uma inversão do vale da estranheza em mim. Se a proximidade com essa máquina human-like poderia me causar repulsa quanto mais semelhante ao humano parecesse; o encontro estético promovido com o robô vai potencialmente desarmando minhas sensações e gerando empatia. Sim, eu termino a obra com certa afetuosidade pela figura, acompanhando seu raciocínio, imprimindo percepções sobre ela e me sentindo impulsionada a pensar sobre as questões que ela revira. Em algum momento, lembro de me questionar sobre como eu poderia estar envolvida em tudo isso sem que houvesse uma presença humana no palco. Mas, a minha própria mente relembra que há uma atitude humana em toda aquela cena montada e que sem essas figuras realmente-iguais-a-mim não haveria nada daquilo a ser experienciado. Mesmo que não haja, materialmente a presença orgânica no palco, há a presença imaterial do pensamento humano articulando e movendo toda a obra e essa pode ser nosso alívio ou zona de conforto.
Essa talvez seja um dos movimentos mais inteligentes da encenação: consegui operar uma experiência estética onde a gente possa vivenciar a curva do vale da estranheza e, em algum momento, se perceber empático a figura robótica quase-humana. Isso é possível pelas linhas de conexão operadas, desde a fala pausada, clara e acessível, até as imagens que revelam o avesso do robô, suas questões compartilhadas e, arrisco dizer, sua vulnerabilidade. Talvez seja até no ponto da vulnerabilidade, da incerteza, do certo medo – serei aplaudido ou não ao final – que criemos uma rede de conexão entre eu-espectadora, o robô-ator, o escritor-original e os artistas-criadores que se presentificam quase numa dimensão divina de operadores invisíveis da artificialidade posta. É justamente por se mostrar diferente de nós, por revelar seus sistemas operacionais que podemos nos aproximar dele. Importante destacar que, a teoria do vale da estranheza proposta por Mori não tem evidência científica, é, portanto, apenas uma hipótese intuitiva do pesquisador; dessa forma, faz sentido pensar que as experiencias dos espectadores com essa obra produzem diversas curvas desse vale – ou nenhuma também.
Para além das discussões frequentemente narradas em filmes sobre a possível dominação dos robôs ou batalhas travadas entre o homem e a máquina; a figura dessa obra nos questiona sobre o que há de maquínico, sistemático e formatado em nós. Artigos científicos que estudam o comportamento humano já revelam que mais da metade das nossas ações, pensamentos e decisões cotidianas são automáticas; para economizar tempo e energia, nosso cérebro tende a formatar o máximo de atitudes possíveis e por isso, nos deparamos com a repetição incessante de certas atitudes na nossa vida. Basta lembrar também da nossa dependência dos diversos gadgets (posso incluir o aparelho para tradução simultânea aqui?) que agora não são apenas acessórios, mas nos compõem integralmente – fones de ouvido, celulares, computadores, google maps, tradutores, jogos de entretenimento. Nem consigo conceber como é viajar de carro somente com indicações tomadas nas ruas ou tentando memorizar a rota que alguém narrou, como faziam nossos pais e avós. A interação com as tecnologias interfere em nossas capacidades de nos divertir, de nos localizar no tempo-espaço por nós mesmos ou ainda de interagir diretamente com os outros. Lembro também dos avatares criados nas redes sociais e para os quais projetamos nossos anseios e personalidades. Ou os avatares criados em aplicativos de relacionamento, onde escolhemos com quem desejamos transar pela combinação de foto e descrição, sem saber sobre o corpo, a voz ou as ideias. O que é humano, de fato? E reitero a ineficiência de um julgamento moral sobre esse contexto, mas da relevância de um pensar sobre si mesmo, tal como o robô faz diante dos espectadores.
Ao final, aplaudimos o robô, tal como ele havia previsto. Alguma coisa aconteceu ali entre ele e nós. Saio provocada por toda a situação instaurada, não consigo parar de falar sobre essas implicações entre robô e humano, automatismo e organicidade. Penso não estarmos tão distantes assim dele, e talvez, justamente por isso, sejamos capazes de cria-lo.
O que seria, exatamente, nossa imagem e semelhança?