Por Heloísa Sousa
03/07/2022
Assim como uma obra artística é um ponto dentro de uma linha formada pelo processo criativo, e geralmente um ponto de arremate; a sucessão de obras gera, igualmente, uma outra linha que costura o trajeto de uma artista e torna-se fundante para observá-la em perspectiva. A atriz, diretora e dramaturga paulista Janaína Leite tem alinhavado, assim, um percurso de trabalhos autorais fortemente calcados em pesquisas estruturadas sobre temas que, frequentemente, soam radicais ou profanos. Questões sobre as quais pouco falamos abertamente ou formas de exposição incomuns ganham espaço de protagonismo nas obras da artista. Digo isso não para impedir a fruição de uma obra por uma espectadora que não tenha acompanhado suas últimas proposições; mas, para destacar o quanto a relação entre suas obras é explícita, o quanto parecem desembocar uma na outra trazendo um panorama aguçado dos lugares que ela escolhe enfrentar.
Os trabalhos autorais de Janaína Leite vão de “Festa de Separação” (2009), “Conversas com meu Pai” (2014), “Feminino Abjeto 1 e 2” (2017/2018), “Stabat Mater” (2019) e “Camming 101” (2020), culminando no recentemente estreado “História do Olho – Um Conto de Fadas Pornô-Noir” durante a MITsp 2022. Suas pesquisas sobre o feminino e a abjeção foram abrindo campo também para uma investigação sobre a relação com a pornografia, partindo do próprio corpo da artista e reverberando em desejos coletivos e diversos (indico o texto crítico de Kil Abreu sobre esta mesma obra, onde ele disserta sobre algumas elaborações conceituais pertinentes a esses trabalhos). Assumindo a investigação por um terreno explícito de expressão das pulsões sexuais, a artista apresenta um enfrentamento com essa questão desde “Stabat Mater” onde propõe a feitura de uma cena de sexo explícito com um ator pornô profissional e a “presença” de sua própria mãe, passando pela palestra-performance sobre sua experiência como camgirl durante 101 dias e atravessando também os eventos nomeados de pornoshows, onde artistas performavam diversos fetiches e exibições com conteúdo sexual para um enorme público virtual. Cito todas essas obras, para reafirmar o trajeto da artista como pesquisadora e reiterar a relevância de perceber seu trabalho a partir dessa extensa paisagem de experiências. Como espectadora, venho acompanhando todas essas proposições (com exceção dos “Femininos Abjetos”) e aliando a um movimento de análise do percurso, reconheço em mim certa ansiedade pelos seus próximos passos. Janaína parece estar sempre na beira do precipício, no limite da radicalidade e quando se pensa que não é possível avançar ainda mais, ela revela a vastidão que ainda existe para além das fronteiras instituídas.
Se em “Festa de Separação”, “Stabat Mater” e “Camming 101”, a artista aparece com protagonismo (mesmo que compartilhado com outros, eventualmente), assumindo direção, performance e escrita da obra, ao chegar na pesquisa mais intensa sobre a pornografia em “História do Olho” parece perceber a relevância da coletividade neste espaço. O espaço subterrâneo e, por vezes, virtualizado que a pornografia abre é também lugar de multiplicidade, coexistência e coletividade. Porque permite e se instaura justamente na contramão da normatividade quando reconhece que o desejo é variável, múltiplo e potencialmente criativo. Em “História do Olho”, a zona erógena é corpo e imagem, e então, ao buscar inscrever o pornô em cena (teatral), quais as grafias possíveis?
Dessa forma, a primeira questão aparece como escolha pontual na obra, a artista não integra o elenco de atores e atrizes, desta vez; é "apenas" diretora. Se a indústria pornográfica, muitas vezes, coopta corpos e desejos de mulheres em função de uma objetificação e violências exacerbadas; não é impossível a movimentação de profanação da própria pornografia vinculada e a tomada de poder de suas lógicas de produção (indico o filme “Pleasure” de Ninja Thyberg para ampliar esse debate). Janaína Leite, então, reencena essa tomada ao dirigir essa obra teatral, um conto de fadas pornô-noir, em duplo movimento profanatório onde recaptura não apenas a pornografia, mas as narrativas românticas e alienantes dos contos de fadas ocidentais em uma atitude satírica e explícita. Portanto, a ausência da artista em cena aos moldes das últimas obras não revela uma hierarquia, distanciamento (ou falta de implicação) na cena teatral-pornô-noir, como sugere a crítica Lorenna Rocha em texto para o panorama crítico da MITsp 2022, mas ao invés disso, eu pressuponho, é um posicionamento na articulação da questão encenada-pesquisada que também instaura uma imagem significativamente feminista pós-pornô. E quando associo aqui, em minha leitura, o movimento feminista pós-pornô destaco que este não se delineia em uma recusa da pornografia, mas sim em uma crítica ao cerceamento das imagens pornográficas em reproduções de uma heterossexualidade normativa e compulsória, além de uma objetificação e violação dos corpos pressupondo o não-consentimento, uma reverberação da colonização dos sujeitos.
Quando me sentei na plateia do Teatro Paulo Eiró e olhei para o lado, Janaína Leite sentava-se ao canto, junto com a drmaturgista e assistente de direção Lara Duarte, como que tornando-se espectadora da própria obra e permitindo-se atravessar pela mesma ao colaborar com a instauração de um terreno prazeroso para os/as doze performers envolvidas na cena. Ao final, a quantidade de pessoas que se acumulavam em fila para receber os aplausos do público, apenas reiterava a potência de uma artista assumindo lugares tornados masculinos pela recorrência e apagamento, e ainda instaurando paisagens de gozo.
O espetáculo toma como referência o livro “História do Olho” (1928) do filósofo francês Georges Bataille que, incentivado pelo seu psicanalista, resolve escrever várias narrativas a partir de suas descobertas sexuais, enquanto jovem. A encenação se inicia com a questão, “qual sua relação com a pornografia”? Essa questão torna-se uma indagação compartilhada entre artistas e público que determina tanto a criação das cenas quanto a sua recepção. É quase impossível estar no mundo e não ter alguma relação, direta ou indiretamente, com a pornografia; seja pelo consumo direto, pela sua produção ou ainda por como essa grafia e indústria atravessa o processo de educação e descobertas sexuais de inúmeras pessoas, determinando, inclusive, nossas atitudes e imaginários sobre o sexo. Se este ainda é tabu, encontra, então, escoamento forte e deslizante pelas vias ocultas. Por esta razão, percebo que a relação individual que cada espectadora estabelece em sua vida com a pornografia (e com o sexo) determina, completamente, a relação estabelecida com esta encenação. A repulsa, a identificação, o moralismo, o desejo, ou quaisquer outros sentimentos parecem sentar-se lado a lado com o espectador diante da obra e talvez até em sua frente. Não que estejamos livres dessas sensações na recepção de outras obras. Mas, em outras temáticas pode haver um corpo na plateia sem expectativas a priori ou disponível para outras guinadas; aqui, somos nós, nossa relação com a pornografia e a cena em si interagindo, juntas e simultaneamente, tentando pôr em diálogo nosso lado social-intelectual-devasso, tal como Bataille ao se arriscar em sua escrita.
Imagem disponível no site oficial da MITsp.
A obra então, dividida em dois atos, atravessa uma representação de alguns trechos do livro de Bataille com outras cenas performativas em que os/as performers apresentam algumas de suas experiências sexuais. O desejo parece sempre mover as escolhas e a montagem, da relação com a pornografia à relação afetiva com o livro. Se em alguns momentos as imagens parecem representações caricatas de fornificação, em outros ela é hiper-realista, embora o campo da representação esteja sempre rondando a prática teatral (e vida também, não à toa falamos do próprio sexo, por vezes, como performance). Um amigo me perguntou: “mas, tem sexo “de verdade”? Difícil responder essa questão porque o que é “sexo de verdade?” Seria algum tipo de penetração? Ato com excitação? Com gozo? Com prazer? Com afeto? E quando somos colocados diante das imagens que se constroem pornográficas, o que acontece conosco? Assim como quando abrimos algum site em um quarto, aos moldes de um boafoda.com e nos masturbamos até atingir um orgasmo, sendo bombardeados, em algum ritmo que nós mesmos ditamos, pelas imagens que povoam nossa paisagem mais íntima de gozo; que tipo de encontro é gerado ali? E por isso, se a obra não é interativa, é porque nossa relação com a pornografia talvez seja mais narcisista ou voyeurista do que imaginamos. Uma retomada daquelas ações da infância, quando investigávamos nosso próprio corpo ou experimentávamos encaixes sexualizados entre nossas bonecas já esboçando os atos lúdicos em torno do sexo em si.
Imagem disponível no site oficial da MITsp.
É essa relação com a imagem, pelo viés pornográfico, que parece interessar aqui. Não o sexo em si, mas a imagem gerada a partir dele. Retomo então, outra questão apontada na crítica de Lorenna Rocha, onde se questiona sobre a "distância" em uma obra cuja questão poderia pressupor encontro. Interessante pensar que, o próprio teatro, nomeado muitas vezes como arte do encontro, tem a própria interatividade como estratégia não recorrente e que marca cenas mais performativas ou “arriscadas”. Não é comum, no teatro, artistas e espectadores se tocarem ou estarem, de fato, implicados um no outro para o desenvolvimento da encenação. O encenador polonês Jerzy Grotowski, por exemplo, enfrenta a questão do encontro movendo a relação espacial entre ator e espectador, em determinada fase. Só que pornografia não é sobre encontro de corpos, em si, é sobre imagem. Observação, contemplação, excitação pelo que está diante de mim. Imaginário sexual. Nesse sentido, me parece que o teatro vem, inclusive, sendo mais pornográfico do que erótico; embora Janaína Leite leve isso a outros níveis não subliminares ou simplesmente simbólicos.
Penso, então, que faz muito sentido essa “não ou pouca interatividade” e a relação frontal reiterada entre palco e plateia; porque aqui, a interação se dá pela excitação ou surpresa nas imagens. E novamente, retomo que isso dependerá completamente da relação que o espectador já possui, previamente, com a pornografia. É como acessar um vídeo pornô ou ler um conto erótico, uma oferta ao leitor(a)/espectador(a) de ápices de excitação que podem ser imaginados ou materializados. O que a peça “História do Olho” nos oferece são essas imagens, algumas vezes “ridículas” (no sentido de parecer risível) e outras “reais” e que desafiam a memória visual de quem assiste. O que essas imagens operam, então, quando estão visíveis no teatro? Sem a proteção das telas ou das quatro paredes de um quarto?
Seria, então, uma encenação sobre efeitos? Ou ainda, uma obra com discurso delineado sobre sexo, pornografia e afins? Creio que não. Embora esses artistas estejam operando num grande campo socialmente ocultado, não dito explicitamente. Há sim, um movimento de jogo com aquilo que não podemos colocar à frente, no palco das discussões sem o viés moralista. Isso porque parece que não cabe, a esta obra, um lugar de dialética ou confronto entre desejos, mas sim, de abertura desses caminhos subterrâneos. O que não quer dizer também que a obra transforme por completo a experiência individual com a pornografia. Isso seria, inclusive, pensar a arte por uma ótica excessivamente sacralizada. A peça “História do Olho – Um Conto de Fadas Pornô-Noir” é uma articulação poética sobre um campo também artístico, mas renegado ao lado z da história. É pura profanação.
Imagem disponível no site oficial da MITsp.
E celebração. Celebração da nossa potência criativa em torno do sexo, potência esta também capturada por sistemas violentos e que reiteram hierarquias entre os corpos almejando aniquilamentos. Há espaço para o imaginário sobre as hierarquias, as dominações, as subjugações, o poder, as inversões e precisamos jogar com esse espaço de representação.
Imagens do banner e capa: Guto Muniz (disponíveis no site oficial da MITsp). Acesse em: https://mitsp.org/2022/fotos/