Por Quemuel Costa
05/07/2022
Escrevo para você fabulando que esta carta te encontre por volta dos sete anos, idade em que até onde lembro foi quando muita coisa se concretizou. Nessa idade você ainda não tinha ido ao teatro, mas ele já havia chegado até você. Não tinha ido a um estádio, mas o futebol já havia chegado até você – como uma bola que rasga o gramado e invade a rede do gol. Na peça sobre a qual te escrevo há vários depoimentos da relação de torcedores com o futebol que começou ainda na infância. No caso deles, esse contato não teve impacto negativo.
É através do contato com os depoimentos, em vídeo e também pelas próprias pessoas em corpo e presença no palco, que o ritmo da obra vai se formando. Enquanto os depoimentos em vídeo exibidos em um telão trazem um caráter muito mais “cru” e documental, muitas vezes parecendo até não haver esforço para que eles segurem a atenção do público, os depoimentos-cenas que acontecem no palco trazem um desenho de cena e de atuação (por mais que sejam feitas por “não-atores”) muito mais marcados e que buscam uma relação mais próxima com o público, estabelecendo em muitos momentos dinâmicas de interação. É interessante observar como a intercalação entre os dois tipos de cena vai criando um contraste entre o que pode ser lido como “vida real” (depoimentos previamente gravados) e “cena” (depoimentos realizados no aqui e agora), ou até mesmo entre vida real e teatro.
O paralelo entre o teatro, a vida e o futebol vai sendo construído quase que nas entrelinhas, pelo menos até o final do espetáculo, quando algumas bandeiras e bandeirões com frases e perguntas são trazidos ao palco e explicitam essa ideia. Entre elas, uma na qual se lia “Procurando público desesperadamente/Cherche desesperement public”. Uma outra cena que faz esse paralelo é a de um dos mascotes que, após dançar freneticamente no palco, relata as dificuldades e a desvalorização da profissão e afirma que o pior nem é ter que ter outro emprego para conseguir pagar as contas, mas ouvir sua filha perguntando com o que é que ele trabalha mesmo. Te lembra alguma profissão que também envolve arte?
Imagem disponível no site oficial da MITsp.
Ao trazer o futebol para o teatro, infelizmente o espetáculo parece cair em algumas problemáticas comuns à ele também. Você sabe bem do que eu falo. Você, que não jogava futebol porque era viado. Que não conseguiu aprender a jogar bola por conta do ódio dos meninos que jogavam futebol, mas entendeu com eles, ao ser barrado dos jogos, que ser uma bicha afeminada dificultaria a sua presença em vários espaços. Principalmente nos dominados pelo masculino.
Em uma das cenas, um árbitro vem ao palco contar um relato, um incômodo que levou ao seu psicanalista. A cena vai se desenrolando em um duplo sentido que vai nos levando a entender que o árbitro e seu psicanalista transaram. Toda a construção da cena busca levar o espectador ao riso, o que não seria nenhum problema se a piada não fosse justamente a relação sexual entre os dois homens. A cada menção a essa relação, o público parece rir mais alto. Não rio e já não consigo mais me concentrar muito bem nas legendas. Me mexo incomodado na cadeira. Me lembro de algumas piadas que ouvia mais novo, talvez no mesmo período que a minha péssima relação com o futebol se concretizou. Uma das coisas relatadas pelo árbitro é um sonho que muito o havia aterrorizado. Após o fim do seu relato, há uma espécie de representação desse sonho por um ator vestido como árbitro. De maneira, digamos assim, afetada e delicada, o ator vai jogando cartões vermelhos no ar e no palco enquanto reproduz alguns passos de ballet ao som de uma música clássica. Meu incômodo permanece. Saí do teatro achando que esse incômodo era só meu, mas conversando com amigos a caminho de casa eles me disseram que tinham se sentido do mesmo modo durante a sobreposição das cenas supracitadas. Ora, se incômodos são gerados em uma quantidade de indivíduos talvez a razão deles seja coletiva, certo?
Imgem disponível no site oficial da MITsp.
O espetáculo segue e não retorna às questões abordadas nessas duas cenas.
Confesso que ao ler sobre o espetáculo e tendo a relação que tenho com o futebol, cheguei a criar expectativas a respeito da discussão da homofobia presente no esporte. O que não acontece. Cogitei então que talvez fosse uma diferença cultural e que o futebol na França não tivesse um caráter tão homofóbico quanto no Brasil (sorte dos franceses, pensei), o que uma rápida pesquisa no google me mostrou que não (leia aqui e aqui). Em suas duas horas, o espetáculo abrange uma imensa quantidade de temas ao redor do futebol, o que torna uma escolha no mínimo curiosa que a homossexualidade apareça nele apenas como motivo de riso.
Ao final de Estádio, o diretor diz que pediu a Jonathan, chefe dos torcedores do time RC Lens, para elaborar alguma cena para o espetáculo. Em vez disso, ele lhe devolveu perguntas, que são projetadas no telão. A última pergunta é “todos falam sobre como é importante ver arte, mas a arte nos vê?”. Escrevendo enquanto bicha e devolvendo a pergunta ao próprio espetáculo, eu tenho a impressão de que ele quase não nos vê e quando o faz é para rir.
Um cheiro,
Quemuel Costa
P.S.: Eu acho que você teria gostado muito de ver os mascotes em cena (suspeito agora que tirei a foto com um deles pensando inconscientemente em você).
P.S².: Vê se dá mais as caras aqui por dentro. Às vezes sinto falta de ser criança viada. Quem sabe em contato com você eu não decido jogar bola só para rasurar o passado?
Imagens do banner e da capa: Silvia Machado (MITsp).