Desenterrando a História

Por Diogo Spinelli
27/07/2022

 

1: Há pouco mais de um mês, acompanhamos na mídia nacional as notícias sobre a morte do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Philips. Desaparecidos na região do Vale do Javari, segunda maior terra indígena do país, localizada no estado do Amazonas, os dois foram mortos a tiros e tiveram seus corpos queimados e enterrados. No contexto dos assassinatos, estão as denúncias de ambos à pesca ilegal, ao roubo de madeira e ao avanço do garimpo na região.

2: Mesmo com a grande articulação de povos indígenas contra a aprovação da PL 490/2007, que geraram uma série de protestos em junho de 2021, o projeto de lei também conhecido como “Marco temporal”, apoiado por mineradoras, grileiros, pecuaristas e demais empresários, ainda segue em discussão no Congresso Nacional. Sendo aprovado, o projeto impedirá o reconhecimento legal de terras tradicionais dos povos originários, caso essas não tenham sido estabelecidas antes da Constituição de 1988.

Esses são apenas dois fatos recentes que me vieram à mente enquanto assistia à Contestados, da Cia. Mútua (Itajaí/SC), e que exemplificam o quanto as disputas por território regadas a interesses do capital estrangeiro permeiam toda a história de nosso país, em uma linha sucessória de eventos que persiste até hoje – e que ganha especial força e incentivo sob governos federais como aquele sob o qual estamos.  

Contestados traz à cena a história da Guerra do Contestado (1912-1916), conflito armado com saldo de mais de oito mil mortos, ocorrido no oeste do estado catarinense, em uma área disputada ente os estados de Paraná e Santa Catarina. A guerra teve início após o governo nacional ter concedido à empresa construtora da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande a posse da terra de ambos os lados da linha do trem, numa área demarcada pela extensão de quinze quilômetros de cada lado da linha férrea.  

Assistindo à obra – e pesquisando mais sobre a guerra para poder escrever esse texto – penso sobre como desconhecemos os conflitos nos quais nosso país esteve envolvido, sejam eles internos, sejam aqueles travados com nossos vizinhos latino-americanos. Isso, por sua vez, me faz lembrar de Caranguejo overdrive, da carioca Aquela Cia. de Teatro, que tem como pano de fundo a Guerra do Paraguai (1864-1870), e de todos os espetáculos da saga Os sertões, do Teat(r)o Oficina, baseados no livro homônimo de Euclides da Cunha que descreve a Guerra de Canudos (1896-1897), e penso sobre como, à maneira que ocorre em Contestados, o teatro tem assumido um papel importante no projeto de desenterrar fatos e momentos esquecidos da nossa história. Além disso, penso a quem interessa que sigamos desconhecendo nosso sangrento histórico de lutas que se arrasta até os dias atuais.

Mas voltemos à Contestados. Ao entrarmos no espaço cênico, somos recebidos pelas atrizes Laura Correa e Mônica Longo. Tendo o compartilhamento de um chimarrão como pretexto, as atrizes começam a travar com o público uma conversa acolhedora, onde aparecem questões sobre identidade e pertencimento: o que é ser de um lugar, o que é ser catarinense? Essa conversa serve como introdução ao tema da obra, que se desenrolará em sua maior parte através da contação da história da Guerra do Contestado tendo como base a técnica de teatro de formas animadas conhecida como “figura plana”.

Essa técnica – que eu nunca havia visto antes e sobre a qual passei a conhecer um pouco mais ao conversar com o terceiro integrante da Cia. Mútua, Guilherme Peixoto, após o espetáculo – é derivada da técnica de animação em papel, e consiste na manipulação em cena de desenhos pintados à mão, esculpidos a laser em placas de MDF.  Se num primeiro olhar a proposta pode parecer menos dinâmica do que outras linguagens do teatro de animação, dada à característica estática dos desenhos, essa impressão se desfaz assim que começamos a ver como se dá sua operação em cena. Capaz de surpreender e de causar diversos efeitos cênicos, a técnica é utilizada com maestria no espetáculo, sendo um de seus principais pontos de atenção.  

A montagem opta por contar a guerra exclusivamente sob o ponto de vista dos vencidos no conflito, conhecidos como caboclos – sendo importante mencionar que, segundo o site do IPHAN, no contexto catarinense o termo “[...]é mais utilizado para representar um ‘modo de ser’ do que para caracterizar um tipo racial”. Esse procedimento, acrescido do fato de ambas as narradoras colarem suas próprias imagens às desses sujeitos – ao ponto de parte da narração ser realizada em primeira pessoa, ao assumirem a voz de uma personagem fictícia presente no conflito – impedem que a história seja apresentada de maneira mais isenta e documental.

Isso faz com que a montagem recaia em certos esquematismos para contar uma história complexa e multifacetada, gerando algumas simplificações maniqueístas. Como exemplo, o tratamento de total adesão dado à figura do monge José Maria de Santo Agostinho, primeiro líder dos campesinos, faz com que não haja um crivo crítico do trabalho com relação ao messianismo inerente ao movimento retratado.

Ainda assim, o trabalho é de grande pujança e sua contribuição para exumar esse capítulo da história brasileira é inegável. Sua relevância ganha ainda mais materialidade e atualidade quando são exibidas no fim da obra imagens de moradores da região onde houve o conflito, retiradas do documentário Terra Cabocla, de Márcia Paraíso. Ao apresentar esse pedaço de nosso passado, Contestados faz com que pensemos quais guerras estão acontecendo agora em nosso país, e o que podemos fazer caso queiramos mudar o percurso da história.

No primeiro episódio da série documental Guerras do Brasil.doc, de Luiz Bolognesi, intitulado As Guerras da Conquista, o historiador, filósofo e liderança indígena Ailton Krenak diz: “Nós estamos sendo invadidos agora. [...] Nós estamos em guerra. Não sei por que você está me olhando com essa cara tão simpática. Nós estamos em guerra. [...] A falsificação ideológica de que nós temos paz, é pra gente continuar mantendo a coisa funcionando. Não tem paz em lugar nenhum. É guerra em todos os lugares o tempo todo”.

 

 

Para acompanhar as críticas dos demais espetáculos do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, clique aqui.

 

Foto do banner: Diego Miranda

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