Entendidos, entenderão.

Por Diogo Spinelli
28/07/2022

 

Correndo o risco dessa percepção ser fruto do meu olhar colonizado, me parece que em outros países, sobretudo nos EUA, há na comunidade LGBTQIA+ um maior respeito e admiração pelos chamados trailblazers, pessoas que estiveram presentes em eventos decisivos para o avanço na conquista de direitos e de visibilidade, como no caso emblemático da Rebelião de Stonewall – pedra angular das paradas do orgulho LGBTQIA+ ao redor do mundo.

Apesar de sermos o país que abriga a maior delas, pouco se sabe e se fala sobre as e os ativistas que viveram e lutaram para que chegássemos até aqui. A obra Homens Pink, da Cia. La Vaca de Florianópolis (SC), preenche parte dessa lacuna, ao homenagear e celebrar essa geração de pioneiros, trazendo para o palco suas memórias e com elas, parte da história do próprio movimento e da cena LGBTQIA+ no Brasil.

Importante salientar que, apesar desse movimento ter sido construído a muitas e diversas mãos, o recorte de entrevistados feito na pesquisa que originou a obra abarca apenas um segmento muito específico dentre esses pioneiros, pioneiras e pioneires: aquele correspondente a homens cisgêneros homossexuais, em sua maior parte brancos, e moradores de grandes centros urbanos do sul e sudeste do país. É a partir desses marcadores sociais que podemos ler as memórias que nos são compartilhadas e presentificadas em cena por Renato Turnes, que empresta seu corpo e sua voz para que desfilem diante de nós as vivências de uma porção de bichas sexagenárias.

A apropriação do termo bicha, utilizado no espetáculo e neste texto como palavra afirmativa, me fez recordar de Bichas – o documentário, de Marlon Parente, disponível na íntegra no canal de YouTube dedicado ao filme. O documentário, lançado em 2016, colhe os depoimentos de seis jovens gays nordestinos na casa dos seus 20 anos de idade, sendo instigante acompanhar o diálogo traçado entre eles e aqueles retratados em Homens Pink. Onde avançamos, onde empacamos? O que significa ser bicha hoje e o que significava há quarenta anos atrás? O que é ser bicha no nordeste ou no sul do país?  

Partindo do que parece ser um relato autobiográfico na cena que abre o espetáculo, Renato Turnes apresenta sua própria história e suas fotos de infância para logo em seguida abrir espaço para que comece a ser construído um mosaico de arquivos pessoais dos nove homens entrevistados durante o processo de criação da obra. Essas imagens, projetadas no fundo do espaço cênico em vários momentos da encenação, ora servem como ilustração documental do que está sendo narrado pelo ator, ora ajudam a compor com maior amplidão e diversidade o retrato da cena LGBTQIA+ de toda uma geração, compreendida entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1990.  

Ideia semelhante de multiplicidade ocorre na cena na qual o ator, acompanhado por uma música ritmada que poderia ser facilmente utilizada para uma performance de bate-cabelo, aguça nossa imaginação para que visualizemos várias bichas em diferentes situações, compondo um quadro que me faz recordar do slogan We’re here, we’re queer, get used to it! – estamos aqui, somos queer, acostume-se com isso.

Em procedimento próximo ao da metodologia da mímesis corpórea desenvolvida pelo Lume Teatro – em mais um diálogo possível a ser trançado entre as obras presentas na programação do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha – Renato Turnes conta as histórias de vários eles, convertendo-se nos donos de cada memória à medida em que essas vão sendo narradas. O figurino, composto parcialmente por peças do acervo dos entrevistados durante o processo de criação da obra, apesar de sintético, auxilia o ator a criar corporeidades e visualidades distintas, que passeiam pela androginia e contribuem para indicar a presença de cada nova personagem. O trabalho com a projeção mapeada, que oras recorta o palco, oras invade-o por completo, cria novas paisagens e atmosferas, dinamiza a área cênica ocupada apenas pelo ator, uma cadeira e um microfone.   

Entre histórias de ferveção e relatos sobre a tragédia da AIDS, que atingiu de forma especialmente dura a essa geração, Renato consegue transitar entre momentos cômicos e densos com bastante desenvoltura. Aliás, o riso ou o risível, quando ocorrem na obra, não são fruto do deboche, como comumente vemos ocorrer quando se trata da representação de homens gays afeminados de certa faixa etária. No caso de Homens Pink o riso – pelo menos da parcela homossexual masculina da plateia – parece surgir mais a partir da chave do reconhecimento: não apenas por identificar aquelas figuras dentro da comunidade, mas por reconhecer-se e projetar-se nelas. Afinal, depois de certa idade, percebemos que não há outro caminho possível para um homem gay que não seja converte-se futuramente em maricona.  

Se a questão do etarismo se faz presente na sociedade como um todo, dentro do meio LGBTQIA+ ela parece atuar com força ainda maior, fazendo com que exista inclusive um sentimento de autodepreciação que não deveria acompanhar quem justamente lutou tanto para ter o orgulho como bandeira. Se já conseguimos nos apropriar da palavra bicha, talvez nosso próximo passo como comunidade seja fazer o mesmo com o termo maricona. E que possamos cada vez mais festejar nossas bichisses maduras e aqueles que vieram antes de nós, como ocorre em todo o espetáculo, mas, sobretudo, no segmento final que encerra Homens Pink.


Para acompanhar as críticas dos demais espetáculos do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, clique aqui.

 

Foto do banner: Lenon Cesar

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