Por Heloísa Sousa
28/07/2022
Em “Homens Pink”, da Cia. La Vaca (SC), projeto contemplado com o Rumos Itaú Cultural, o ator e diretor Renato Turnes cria uma peça teatral a partir dos depoimentos de alguns homens gays mais velhos. Aqueles nomeados em outros tempos como mariconas, cujo recorte temporal em seus corpos revelam outros modos de lidar com as subjetividades, a sexualidade a partir das interdições contextuais. Com a contínua marginalização dos corpos LGBTQIA+, que na realidade compreende uma maioria social; a sobrevivência frente às violências, expulsões, discriminações e assassinatos sistematizados torna-se uma conquista a ser celebrada. As memórias desses homens que já passaram da metade dos anos da expectativa de vida comum nos apresentam corpos que também são documentos vivos de lutas e revoluções que culminaram nas conquistas possíveis na atualidade. Quantos não tiveram que morrer antes para que outros possam viver hoje? Trazer essas memórias ao centro revela um movimento de pesquisa consistente e pertinente da Cia. La Vaca que culmina não apenas na obra teatral apresentada nesta edição do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, mas também em um documentário e um vídeo-performance. É uma obra constelativa, cuja densidade da pesquisa faz os artistas reunirem tanto material urgente que ele se ramifica em múltiplas formas de apresentação.
Acompanhando a programação do Festival, percebo que estamos novamente diante da temática LGBTQIA+, como já tinha sido visto em “Amar é Crime” de Jônata Gonçalves (SC), inclusive com uma organização cênica que apresenta semelhanças entre as duas obras. Vivenciar festivais e mostras locais é também interessante para perceber as recorrências que se revelam; a curadoria já começa a delinear aos espectadores alguns traços evidentes de conexão entre as obras e talvez, a percepção de que a própria produção artística contemporânea da cidade tem se debruçado sobre certos interesses temáticos e estéticos. Esse movimento é sempre fluido e nos coloca também diante das urgências das cidades, seja dos artistas frente ao contexto, seja do próprio público e suas ânsias, seja do confronto entre os dois.
A peça nos faz lembrar da estrutura do stand-up comedy, que cito aqui como forma cênica caracterizada por ser um espetáculo de humor apresentado por apenas uma pessoa. A escolha por um monólogo, recai aqui em um ator que transita entre narrador e personagem, confundindo ainda suas histórias com os depoimentos coletados, estratégia que revela uma reverberação da pesquisa no corpo do ator como sujeito no mundo. Diz dos entrevistados, diz do ator e pode dizer de muitos espectadores também, há uma busca por gerar identificações em rede. Ver a si mesmo em cena, e vivo.
A consequência dessa escolha acaba recaindo em pouca elaboração de encenação nos colocando diante de uma imagem de cena comum ao teatro, um ator no centro protagonista, uma cadeira como único objeto, algumas trocas de figurino e uma projeção ao fundo como paisagem. A temática e os depoimentos são tão relevantes e inéditos que parecem tomar conta de toda a criação da obra que a experiência cênica em si fica em segundo plano.
Foto: Lenom César.
Associo com a forma do stand-up comedy pela apresentação de uma dramaturgia onde a comicidade é recorrente e o riso do público permeia boa parte da duração da obra. Se por um lado, isso traz leveza a uma temática de resistência de vida de figuras marginalizadas, além de corroborar com a aura festiva e de celebração desse universo, por outro, traz dúvida sobre os modos de satirização consigo mesmo. Torna-se evidente um olhar que cobra pela beleza e jovialidade, que rejeita a ação dos anos sobre o corpo, apresenta o medo do descarte e de não ser mais sujeito do desejo alheio; o entendimento sobre a orientação sexual afirmada ainda reiterada em uma performance de gênero para os corpos afeminados, experimentação de aparências desobedientes. Se o discurso da obra parece datado em algumas abordagens é justamente por centralizar o pensamento de um recorte temporal que traz à tona a discussão do etarismo entre os gays. A pauta transita entre a emergência e o anacronismo ainda mais em uma sociedade que descarta memória e corpos mais velhos entendendo-os como improdutivos. No documentário também dirigido por Renato Turnes, um dos entrevistados fala de um tempo em que certas palavras ainda não existiam, a sigla que hoje se expande um dia ainda foi restrita ao gls, bichas e travestis se confundiam em uma sociedade que recusava (e ainda insiste na recusa) a existência dessas pessoas. Mas, é justamente a observação dessa passagem temporal, dessa trajetória de transformações do pensamento e reconhecimento da diversidade em profusão que “Homens Pink” torna evidente.
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