Por Heloísa Sousa
29/07/2022
A arte elabora, frequentemente, um espaço social alternativo onde pensamentos, práticas e corpos marginalizados são acolhidos e postos em comunhão. Como espaço próprio de experimentação estética e valorização do entendimento do mundo por outras vias menos racionais, dezenas de grupos feministas, negros, indígenas, lgbtqia+ se unem em torno da prática artística formando pequenas utopias de resistência aos sistemas que cerceiam as individualidades e suas formas variadas de estar no mundo. A arte também, frequentemente, ameaça o pensamento vigente que sustenta as realidades opressoras quando expõe seus mecanismos e exibe cenas que subvertem as fronteiras dos imaginários que nos são impostos. Embora, sendo também uma prática social e humana, ela revela a reprodução das formas sociais em massa em seus próprios processos criativos e palcos, podendo ser então, autocriticada por si mesma na sua estruturação.
O livro “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade” (1990) de Judith Butler talvez tenha sido um dos livros que mais me atravessou nos estudos sobre gênero, seja pela construção do pensamento da autora sobre a performance de gênero, seja pela sua habilidade em articular diversas teorias de outras feministas para construir a questão do seu livro. Apesar da leitura complexa e nada fácil, sempre penso como seria fundamental que homens estivessem fazendo essa leitura como muitas mulheres e outras identidades de gênero vem fazendo.
Ao citar a escritora e téorica Monique Wittig, a autora do livro pontua que:
“Para Wittig, a restrição binária que pesa sobre o sexo atende aos objetivos reprodutivos de um sistema de heterossexualidade compulsória; ela afirma, ocasionalmente, que a derrubada da heterossexualidade compulsória irá inaugurar um verdadeiro humanismo da ‘pessoa’, livre dos grilhões do sexo. [...] Em outras palavras, só os homens são ‘pessoas’ e não existe outro gênero senão o feminino: ‘o gênero é o índice linguístico da oposição política entre os sexos. E gênero é usado aqui no singular porque sem dúvida não há dois gêneros. Há somente um: o feminino, o ‘masculino’ não sendo um gênero. Pois o masculino não é o masculino, mas o geral’”. (BUTLER, 1990).
O masculino tendo se construído como o geral ou o universal se percebe como não sendo passível de crítica, todos os outros corpos e sujeitos fora do reconhecimento padrão de um homem-cis-hetero-branco acaba sendo o outro e recorre aos estudos e práticas de agrupamento para pensar e agir modos de não interdição de sua individualidade e de resistência ao sistema. É por isso, que os estudos de gênero possuem tantas teóricas mulheres e delineiam o feminismo como grande espaço de articulação dos infinitos pensamentos sobre as opressões e hierarquias de gênero que sustentam a sociedade patriarcal.
Do outro lado, a masculinidade não se pensa, os homens costumam não ver a si mesmos na mesma lógica da performance de gênero que compreendemos e pretendem-se naturais e orgânicos em suas formas de pensar e agir no mundo. Reiterando violências como sendo intrínsecas a si, consequência biológica do gênero com o qual foram categorizados a partir da genitália identificada quando bebês.
É também por isso que vemos tantas produções artísticas sobre feminismo e as diversas identidades de gênero, mas pouca produção debruçada sobre a performance da masculinidade, suas violências e toxicidades agregadas. Na memória, lembro do documentário “The Mask You Live In” (2015), dirigido por Jennifer Newson (!!!) e que expõe as consequências emocionais das narrativas também impostas aos homens sobre como devem se portar no mundo para serem identificados nos seus gêneros. E eu nem sei se esse documentário foi visto por tantos homens quanto foi visto por outras mulheres.
O projeto do Grupo Risco de Teatro (SC) em criar uma obra teatral que trate sobre a masculinidade tóxica, coloca em cena dois atores – Rafael Orsi e Rodolfo Lemos – dirigido por Renato Turnes (Cia. La Vaca), que elaboram juntos uma dramaturgia que centraliza a figura masculina para expor seu percurso de construção social e suas contradições. É um projeto que não é comum. A cena costuma trazer protagonismo para as outras identidades de gênero marginalizadas, reiterando suas narrativas e singularidades, colocando o opressor como um outro que sustenta a violência, quase em um jogo inverso ao modo como a sociedade estrutura os sujeitos. Em “Rinha” esse outro retorna ao centro, mas não apenas como afirmação inquestionável de suas ficções, mas como depoimento passível de provocações até por si mesmo.
Impossível não lembrar também dos livros da pesquisadora norte-americana bell hooks que convida os homens ao processo de autorreflexão sobre as construções em torno do gênero e suas afetividades, para que possamos vislumbrar a possibilidade de não vivermos em uma eterna trincheira binária.
O Grupo Risco opta, então, por trazer a discussão da masculinidade tóxica, tomando a questão da violência e da agressividade como marcadores do estereótipo masculino. Interessante observar o convite a Renato Turner, um artista gay mais velho, para dirigir dois atores jovens performando uma masculinidade tão estruturada e explícita. É esse encontro certeiro que parece trazer uma tensão ao próprio processo criativo, que sustenta inclusive a sensibilidade da obra mesmo nessa temática, talvez justamente pelo antagonismo da relação instituída. Quando apresento essa tensão, não digo de eventuais conflitos pessoais em um processo de criação, mas de pôr juntos a criar corpos que representam também algum antagonismo social. Para que o discurso não recaia num artificialismo e exposição cínica de um pensamento já construído, mas que não reverbera, de fato, nos corpos criadores. Sempre me questiono sobre a diversidade de pessoas na ficha técnica, com quem se trabalhou e quais posições esses indivíduos ocupam nessa listagem. Estar disposto a viver a tensão no processo, essa microesfera social e política, para radicalizar efetivamente a experiência de criação.
A estratégia de encenação de Renato Turner se repete em relação a “Homens Pink”, outra encenação dirigida por ele e que também integra a programação desta edição do Festival de Teatro Brasileiro Toni Cunha. O grupo se propôs a realizar uma sequência de entrevistas com outros homens a respeito da temática, para construir uma dramaturgia a partir de seus depoimentos. Com essa recorrência, Renato parece instaurar, como diretor de teatro, um procedimento pontual de teatro de pesquisa.
No entanto, se a obra tem esse procedimento de levantamento documental, na criação da encenação ela dá uma guinada ao apresentar certa ficção em cena a partir das narrativas recolhidas. Esse flerte entre o teatro documental e a ficção é interessante quando permite o reposicionamento da teatralidade. Essa ficção sendo sempre apresentada com certa dubiedade e a troca entre a primeira e a terceira pessoa na linguagem verbal, não nos dando a certeza se se trata da história do ator ou de outras pessoas, ou de uma mistura entre elas. Essa incerteza não precariza a obra, mas instaura um eco de identificação, essa narrativa pode estar em vários corpos para além de uma personagem.
Mas, se em “Homens Pink” a encenação concentra-se no corpo do ator, em “Rinha”, a direção expande o pensamento teatral e apresenta uma encenação com uma camada minimalista, mas com forte potência de composição. Os objetos de cena são poucos, mas suficientes para instaurar um espaço cênico do ringue, do treino e do enfrentamento, além das posições que os atores ocupam no espaço explorando centralidade, diagonais e outras linhas, em exemplos explícitos de uma dramaturgia do espaço, apoiada pelos contornos dados pela iluminação para as imagens. Pelo movimento dos corpos, o espaço se instaura, se expande, se contrai, e até cerca o público quando os atores iniciam e encerram a peça correndo ao nosso redor.
Em uma conversa pós-apresentação, tomamos conhecimento de que os atores aprenderam boxe durante os seis meses de processo criativo para trazer as figuras em cena, aos moldes dos processos em cinema. E é muito interessante perceber a presença cênica sustentada por uma coreografia de gestos tão rígidos e que servem a agressão.
Transitando entre personagens e narrador, eles nos contam a história de um garoto que presenciava violência doméstica de seu pai contra sua mãe e era educado a partir dessa mesma prática. Ser agressivo é algo que vai sendo construído no corpo daquela criança desde cedo. Ele necessita violentar/bater para se afirmar no mundo; não é apenas uma defesa ou estratégia de proteção do corpo, mas instauração de um ego. Conseguir estender o fio narrativo que contempla a vida da personagem, desde sua infância até a fase adulta na unidade de tempo de uma peça de teatro é notável.
Foto: Ambar Audiovisual.
Retomo Butler (1990) ao dizer que: “A crítica genealógica recusa-se a buscar as origens do gênero, a verdade íntima do desejo feminino, uma identidade sexual genuína ou autêntica que a repressão impede de ver; em vez disso, ela investiga as apostas políticas, designando como origem e causa categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos”.
Se Butler diz essa frase para falar sobre o feminino, ela tem a mesma validade pra lidar com o masculino. E é esse movimento que o Grupo Risco faz, ao recusar a ideia de naturalidade das performances reiteradas pelos homens, para apresentá-la como derivada de um percurso de aprendizagem e repetições que determinam o sujeito e o torna efeito desse discurso.
O mais interessante são as problematizações que a dramaturgia traz sobre a figura em cena. A personagem que narra suas sucessivas brigas e agressões com detalhes espetacularizados, é a mesma que não se percebe violenta porque não chega a matar. Existe uma ética que esse corpo busca sustentar e que expõe suas próprias contradições, mas também uma busca de se integrar socialmente mesmo nessas repetições violentas e que ameaçam o próprio corpo social. O que parece automatismo não é completamente livre de consciência ou de elaboração individual. Ou ainda, ao expor sua angústia quando a filha diz que não precisa dele, desafiando o papel social onde ele baseia a construção do seu ego.
E uma das questões mais potentes a ser apresentada na obra é sobre a expectativa do alívio, de que algo irá escapar ou fazer escoar a tensão retida no corpo. Mas, o alívio não vem. E ainda assim, ele repete o seu caminho de busca. Nesse ponto, a relação entre dor e gozo é fundamental, e pano para muitas discussões psicanalíticas. O prazer elaborado aos moldes de Clube da Luta, obra cinematográfica de David Fincher. O sangue que escorre na mão rígida é espelho da imagem do esperma que jorra do pau duro. Nessa ação, o medo é sublimado, e uma “boa briga é como uma boa foda”.
E então, percebo o alívio que eu sinto, enquanto espectadora de ver a exposição do processo de composição dessa narrativa violenta no corpo dos atores e pelos próprios atores. Autoconsciência das ações repetitivas que nos compõem e de que como elas surgem na gente. Não que a obra ou o meu alívio sejam suficientes para transformar qualquer estrutura ou ainda comportamentos do público ou dos próprios artistas envolvidos na criação; mas, permite que a experiência cênica esboce algum tipo de vínculo ou pacto de comprometimento com a desarticulação desse rígido sistema que ameaça a existência do meu próprio corpo, por exemplo. E esse alívio nem é tão comum a outros espectadores, já que os atores precisam ultrapassar a afeto negativo já instaurado em relação à masculinidade para que alguma escuta seja efetivada; não á toa, os poucos momentos de falas que poderiam gerar o riso, apenas deixam pairar o silêncio intenso do público. Não há conforto diante daquelas figuras para que algum sorriso aconteça.
As imagens da encenação não são coadjuvantes e nem inocentes na composição entre a luz, a dramaturgia do espaço e as coreografias dos corpos de dois homens com silhuetas grandes e onde reconhecemos uma masculinidade facilmente (associando inclusive ao medo, a submissão, ao tóxico). Os golpes duros se organizam como uma dança. A respiração ofegante torna-se sonoridade. A associação animalesca é complementada pelas focinheiras, readaptadas aqui como máscaras, elemento recorrente em figuras masculinas icônicas violentas, sádicas e loucas do mundo do cinema como o vilão Bane, o protagonista de “Mad Max” ou o psicopata Hannibal.
Os búfalos projetados ao fundo também lembram o roteiro de Guillermo Arriaga para “Amores Brutos”, onde as narrativas de três homens se cruzam e cenas de rinhas de cachorros simbolizam a violência dos próprios personagens. Ao final, ouvimos Hurt com a voz grave de Johnny Cash. Me pergunto se quase nunca há equivalentes na música brasileira para os sentimentos e discursos que queremos evocar numa cena, para que não tenhamos que recorrer sempre a músicas em outros idiomas que limitam o entendimento de algumas pessoas da plateia. Inclusive, se você assistiu “Rinha”, sugiro que escute atentamente a letra dessa música final que atravessa bem a experiência de recepção. Lembro então, de Cash cantando “Folsom Prison Blues” para presidiários nos EUA.
When I was just a baby / Quando eu era apenas um bebê
My mama told me, son / Minha mãe me disse, filho
Always be a good boy / Seja sempre um bom garoto
Don’t never play with guns / Nunca brinque com armas
But I shot a man in Reno / Mas, eu atirei em um homem em Reno
Just to watch him die / Apenas para vê-lo morrer
When I hear the whistle blowing / E quando eu escuto o apito
I hang my head and cry... / Eu seguro minha cabeça e choro...
“Rinha” também poderia circular por esses espaços, ou quaisquer outros onde homens fossem a plateia majoritária. “Rinha” precisa circular por esses espaços, por esse público. Tem uma potência autorreflexiva na obra, por um grupo que costuma não se autorrefletir, e que é assumido como projeto pelo Grupo Risco e que não pode ser colocada de escanteio.
Para acompanhar as críticas dos demais espetáculos do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, clique aqui.