Por Heloísa Sousa
30/07/2022
Qual o espaço do erotismo e da pornografia no teatro? Sabemos seu espaço na literatura, no cinema, na dança, nas artes plásticas (de onde a pornografia se origina, por sinal, em afrescos da Antiguidade com imagens de conteúdo sexual), na música também. E no teatro? Nessa dita arte do encontro, onde a cena acontece no aqui e agora, onde a proximidade entre os corpos público-artista é mais desafiadora, como a excitação tem espaço nisso? E quando reitero a questão sobre esse espaço é porque considero o erotismo uma camada relevante e forte nas subjetividades e que atravessam os modos como nos relacionamos no mundo. Lembro então de alguns artistas do teatro atuando em São Paulo, capital, que tem reapresentado essa tônica e marcado uma das possibilidades discursivas e estéticas da cena contemporânea brasileira. Carolina Bianchi quando fala de transar com o espaço na construção de algumas de suas obras, Janaína Leite com a mais recente peça “História do Olho – Um Conto de Fadas Noir-Pornô” (2022) junto com outras obras e experimentações derivadas de sua pesquisa sobre a pornografia como o “Camming 101 Noites” (2021) e os pornoshows, e ainda as criações do Teatro da PombaGira a partir do homoerotismo.
Trago, então, a obra “Proibido Acesso” do Karma Coletivo (SC) para dentro dessa listagem de montagens contemporâneas que centralizam essa discussão. Ao mesmo tempo que tenho dúvidas se o erotismo e a pornografia na arte entram, de fato, como temática e discussão, ou se, ao contrário são muito mais um campo de experimentação. A aproximação entre o sexo e a ludicidade permite que a cena erótica adentre lugares de celebração, descoberta e prazeres cujos acessos nos são proibidos. O que acontece entre quatro paredes é excluído do campo social, por vezes até dos campos políticos, trazendo a intimidade para uma zona do não-dito, não-afirmado, embora absurdamente desejado coletivamente.
O Karma Coletivo é um grupo catarinense que já vem experimentando entre o teatro, a dança e a performance em sua trajetória, borrando essas fronteiras institucionalizadas entre as linguagens artísticas. Em “Proibido Acesso”, essa qualidade estética é explícita, há uma sobreposição de dança, de montagem de imagens, de recursos audiovisuais e de exposição de depoimentos que nos deixa diante de uma obra que muda seus contornos continuamente. Há uma escolha minimalista na coesão e quantidade dos elementos de cena; mas, a obra mostra como não é preciso recorrer à exagerada simplicidade de uma cadeira e um ator para instaurar uma imagem forte na cena. Entrar no Teatro Municipal de Itajaí e ver a primeira instalação já é o início da obra e já convoca uma percepção. Uma atitude muito simples do ator em cena, de parecer que está mascando um chiclete e sentar-se com uma abertura corporal, já estabelece um convite, uma oferta e um controle. É uma cena atenta aos detalhes das texturas, cores e pontos luminosos. A cenografia me faz lembrar de “MDLSX” da Cia. Motus (Itália) ao mesmo tempo que o uso da cor preta nos objetos, chão, figurinos e adereços me lembra as cenografias de Tadeuz Kantor (Polônia) e sua habilidade em criar perspectiva em cena com uma cor que tende a uniformização.
Acho que já escrevi isso em algum outro texto ao longo dessa experiência intensa de acompanhar parte da cena de Itajaí pelo Festival de Teatro Brasileiro Toni Cunha, o quanto alguns artistas dessa cidade tem uma habilidade e pensamento elaborado sobre cenografia e teatro de animação, conseguindo expansão e espacialidades complexas com poucos elementos de cena. Destaco, nesse sentido, tanto a cenografia de “Proibido Acesso” quanto a de “Rinha” e a de “Para Contar Estrelas”, ou ainda os objetos de cena e animação que aparecem em “Contestados” e “Papelê – Uma Aventura de Papel”. Reitero que esse é apenas um dos aspectos notáveis na cena de Itajaí apresentada neste ano de 2022 durante o festival. A precariedade dos recursos cenográficos parece ser quase sempre uma questão delicada para cidades que não são capitais e costumam não receber o mesmo orçamento para cultura que outras cidades maiores; embora seja a própria precariedade que faz o artista encontrar outros modos de criar sem despotencializar suas ideias, o que não deve ser tomado como solução ou romantização, mas que não deixa de ser um sintoma evidente.
Ao fundo de “Proibido Acesso”, uma projeção toma conta de quase toda a parede e apresenta uma sucessão de frases ou vídeos que se associam as outras imagens de cena, por vezes satirizando, por vezes contrapondo e por vezes replicando. Os vídeos que evidenciam o corpo do ator e suas relações de toque consigo mesmo, em ligeiras masturbações em looping com a própria boca, lembram os videoartes do Teatro das PombaGira. Se em alguns momentos os vídeos compõem sincronicamente com a cena, como a projeção de He-Man junto com a narração da foda feita pelo ator com voz distorcida; em outros, as cenas projetadas capturam a atenção de modo a quase nos dissociar da cena em si. Há uma hipnose da imagem.
A imagem é uma questão na obra. Existe uma dramaturgia dos signos em “Proibido Acesso”, onde algum objeto ou imagem trazido para o espaço parece abrir uma cadeia de significados no espectador que dispensam quaisquer outras narrativas, ações maiores ou algo que explique e destrua a imagem em autocelebração. E o que o signo pede é que ele tenha espaço para se instaurar, como no ato longo de banhar o corpo com óleo – uma ação apenas estendida e tomando o tempo necessário para se concluir – é esse mesmo tempo que permite que a imagem em si se construa e que outros sentidos, como o cheiro, se apresentem. E nesse ponto, temos o erótico como anunciação. Aquilo que contorna.
Mas, se a obra parece apostar nessas imagens e seguir para uma exploração da presença do ator em cena e o tempo estendido dos seus movimentos; por outro, parece trair seu próprio procedimento quando apresenta a narração sobre o que envolveu a criação da obra, buscando uma abordagem documental ou formalismo poético daquilo que é puro gozo e experiência. São as narrativas muito objetivas, limpas e documentais que retiram a excitação da cena e nos deixam a mercê de outros processos racionais não tão urgentes naquele momento.
“Proibido Acesso” traz ao centro aquilo que está escondido no subterrâneo, os dark rooms dos nossos desejos, as práticas de bdsm e as fissuras entre risco e gozo. Ao mesmo tempo que enaltece o corpo do jovem, branco, homem com musculatura definida replicando as esculturas europeias renascentistas que mostram como nossa excitação está vinculada a uma cultura imagética padronizada e repetida. É uma peça íntima, não exatamente pessoal e muito menos com pretensões políticas de articulação coletiva; mas, íntima. E então, qual o espaço do erotismo, da pornografia e da intimidade no teatro? Qual o espaço da memória e imagem criadas ao bel prazer, mas não da ordem do deleite estético, mas da busca por o que pode [sentir] o corpo para subverter a máxima espinosana?
A linha curatorial da mostra local desse festival vai se delineando mais a cada apresentação que assistimos e poder observar a cena local por esse recorte tem sido uma das coisas que mais me instiga em eventos como esse. Percebo a recorrência de homens protagonistas no teatro adulto desse recorte, onde inclusive a sexualidade e as performances de gênero são as questões que tomam o centro. As mulheres atrizes aparecem nas montagens infantis e de animação, sem restrição etária do público. Nesse ponto, lembro então do texto de Audre Lorde, “Os usos do erótico e o erótico como poder” e deixo aqui o último parágrafo de seu texto, para também encerrar o meu, como provocação para o que virá.
“Reconhecer o poder do erótico em nossas vidas pode nos dar a energia necessária pra fazer mudanças genuínas em nosso mundo, mais que meramente estabelecer uma mudança de personagens no mesmo drama tedioso. Pois não só tocamos nossa fonte mais profundamente criativa, mas fazemos o que é fêmeo e autoafirmativo frente a uma sociedade racista, patriarcal e anti-erótica” (LORDE).
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