Por Diogo Spinelli
31/07/2022
Enquanto aguardávamos na área interna da Casa de Cultura Dide Brandão, onde Casa, do Grupo Teatral Porto Cênico (Itajaí/SC), foi apresentado como parte da programação do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a maior parte do público do espetáculo corria pelo pátio interno, saltitava, explorava os espaços, os sons – e um deles já havia até mesmo cortado o lábio nesse ínterim. O que ocorre é que o trabalho criado pelo coletivo itajaiense tem como público-alvo bebês de 0 a 3 anos de idade, e eram esses bebês e crianças, acompanhados por seus pais e (na maior parte) por suas mães, que compunham a fila de entrada para ver a obra.
Nela, as relações entre mãe e filhos na primeira infância constituem o eixo principal da dramaturgia, numa atmosfera que remete ao ato de contar histórias à cama como forma de embalar os sonhos dos pequenos, e a essa sensação, ou a esse momento do dia, nos quais não estamos nem totalmente dormindo, nem totalmente despertos. Esse ambiente é reforçado tanto pelos figurinos das duas atrizes em cena, que remetem a camisolas, quanto pelos próprios elementos de cena, dentre os quais se destaca o uso de lençóis, que se transformam em camas, oceanos, fantasmas, bebês... Esse ambiente noturno, propício ao compartilhamento de memórias e histórias (e talvez até alguns segredos) é retomado ainda pela dramaturgia, que repete em variados momentos a construção “Na minha casa, à noite”.
Ao contrário do que comumente associa-se às produções destinadas ao público infantil, Casa é uma obra que opta pelo pouco uso de cores em seus figurinos e adereços, cabendo à iluminação colori-los apenas em determinados momentos como forma de auxiliar na construção imagética sugerida pelas memórias das atrizes Valéria de Oliveira e Aline Barth. Do mesmo modo, as sonoridades propostas evocam um ambiente de delicadeza, e ao mesmo tempo, remetem ao universo cotidiano do público-alvo, com a utilização do som das águas e de canções que se assemelham a cantigas de ninar. Assim, em vez de expor as crianças a vários e excitantes estímulos, a obra parece buscar, como contraponto, um caminho que aposta na simplicidade e na quietude.
Foi interessante perceber como aquelas mesmas crianças que corriam e se agitavam do lado de fora do espaço cênico ficaram imersas na obra a partir dessa outra chave de comunicação proposta pelo trabalho. Não que essa imersão tenha significado assistir à obra imóveis e em silêncio. Ao contrário. O constante comentário sonoro produzido por esse público, que em um ambiente de teatro adulto seria considerado fora da norma ou até mesmo desrespeitoso, torna-se aqui parte constituinte do espetáculo.
Além disso, esse ato funciona, sobretudo, como um reflexo das apreensões do público-alvo sobre o que está sendo assistido e experienciado. Desse modo, choros, risos, balbucios de palavras – dentre as quais invariavelmente escapa um ou outro “mãe” – ecoam os temas e as situações que são apresentadas no palco, contribuindo inclusive na criação de ambiências sonoras para o trabalho. Nesse sentido, as orientações prévias dadas às mães e aos pais pela produção do espetáculo antes deste se iniciar, referentes à proposta da obra e a relação esperada entre esta e o público-mirim, soam demasiadamente disciplinadoras e pouco acolhedoras com relação às possíveis inquietações que poderão surgir nessa comunicação entre as crianças e o espetáculo, desconsiderando que é justamente através dessas intervenções que o diálogo entre essas duas instâncias se estabelece.
Ao ter como principal eixo dramatúrgico a figura materna, Casa parece destinar-se não apenas ao público da primeiríssima infância, fazendo com que seu discurso dialogue também com as mães que acompanham seus rebentos nessas que podem ser suas primeiras experiências com a linguagem teatral. Apesar do trabalho trazer uma versão romantizada e por vezes idealizada da maternidade – talvez por olhar para essa figura pelo filtro do passado –, pouco próxima das dificuldades e contradições cotidianas enfrentadas pelo público de mães (e pais) presentes na plateia, a narrativa do espetáculo possibilita que essa fatia do público revisite suas próprias lembranças de infância, ou ainda, reflita sobre que futuras memórias desejam construir no hoje junto a seus filhos e filhas.
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Foto do banner: Isadora Manerich