[De nós para os bebês]

Por Heloísa Sousa
31/07/2022

Ao final do espetáculo, uma das atrizes distribui fotografias de sua infância ou da infância de seus filhos para as crianças sentadas na primeira fileira. A última criança a receber a foto era um bebê sentado no colo de mãe. A mãe pega a fotografia e mostra ao bebê. Ele pega a foto amassando.

Outra criança menor diz sucessivas vezes “azul”, quando um dos refletores com a cor azul se acende. Ela repete a palavra mesmo quando a cor do refletor muda para um tom entre o roxo e o rosa.

Uma criança que aparenta ter entre dois e três anos, sentada no colo da mãe, observa a peça atentamente, observa as outras crianças ao lado dela também, em vários momentos no decorrer da peça.

Uma criança ri de modo gostoso quando uma das atrizes ri em cena. E cada vez que a atriz ri, a criança ri junto novamente.

Uma das crianças sentada na fileira de trás se mantém concentrada na obra por uns quinze ou vinte minutos. Em um momento, se levanta e diz “quero sair” esboçando um choro. A mãe levanta-se e sai com a criança, no escuro, se esforçando muito para não fazer barulho. O celular cai no chão. Ela apanha. As duas saem. Eu observo.

Se o espetáculo “Casa” do Grupo Porto Cênico (SC) é o resultado de uma pesquisa sobre como criar peças para bebês de zero a três anos de idade; para nós, adultos, o espetáculo é assistir as crianças assistindo ao espetáculo. A primeira infância possui uma série de peculiaridades que exigem outras abordagens para que haja experiência e aprendizagem. Bebês estão descobrindo seu próprio corpo, os outros e o espaço; compreendendo como articular ações que consideramos simples como andar, falar, segurar; além de terem outra forma de comunicação que não é pela articulação dos verbos como nós fazemos. É um corpo se transformando da forma mais radical. Em poucos anos, esses bebês desenvolvem dezenas de habilidades básicas e complexas para conseguir interagir no mundo. Isso junto com toda a sua capacidade sensível, história e subjetividade.

Para os bebês não há os signos, mas a sensorialidade. O que eles têm é o próprio corpo habitando o mundo. Logo, seu modo de apreender está relacionado aos estímulos imagéticos, luminosos, sonoros, táteis, entre outros; a apreensão de uma narrativa não é uma prioridade e nem uma capacidade desenvolvida quando se é muito pequeno. Seu foco está nas sensações e não no encadeamento lógico das situações. Sua urgência de aprendizagem é no sentir o mundo, muito mais do que em compreendê-lo ou capturá-lo racionalmente. Nesse sentido, parece que a obra “Casa” tenta apresentar diferentes sons, cores e movimentos para esse público em um tempo mais ralentado, apostando na serenidade como forma de imersão na experiência. Confiando na atenção dos bebês, as duas atrizes em cena recuperam suas próprias memórias de infância e narram algumas situações com seu próprio corpo, objetos de tecido e instrumentos sonoros. Algumas palavras e situações são repetidas até que se instaure uma imagem, aguardando o tempo da sensação, para em seguida sugerir outra coisa.

Foto de Isadora Manerich.

Mas, ainda existe um fio narrativo em paralelo que parece querer apresentar uma obra aos adultos que acompanham as crianças. O público a que se destina o espetáculo, provavelmente, não precisa desse fio narrativo; não por incapacidade, de fato, mas por essa não ser uma prioridade em suas experiências no mundo. Enquanto para os adultos, observar a atenção desses bebês para com a obra se transforma na experiência em si.

Escrever sobre uma peça criada para os bebês parece uma atividade desafiadora, visto que o processo criativo da obra é atravessado por uma pesquisa sobre como criar uma experiência estética e cênica para essa faixa etária com todas as peculiaridades que lhe cabe. Seria, talvez, importante conhecer mais da pesquisa para compreender e analisar as escolhas na obra. O que me faz pensar sobre as especificidades das múltiplas linguagens teatrais e como a crítica teatral vai dando conta dessas diferentes técnicas e formas de enunciação e expressão. O que exige diferentes críticos de diferentes saberes escrevendo sobre diferentes obras.

Ainda assim, é possível observar questões da obra postas na própria apresentação. Se a narrativa parece servir mais ao público adulto do que ao público infantil, ela acaba por reiterar papeis sociais questionáveis. Na obra, a figura do pai é uma ausência assumida e abissal, apenas a mãe está ali como casa e para casa, sozinha, cuidando. Cuidando da casa, da criança, entretanto, talvez, quem sabe, se for possível, cuidando de si. A criança chama, ela tenta escapar, mas está ali. A presença dela é inquestionável e aprisiona. “Não é só mãe quem gerencia o cuidado”, diz Venusiane, uma amiga da cidade de onde vim. Mas, na narrativa do espetáculo “Casa”, o cuidado parece restrito a essa figura, e por mais que haja afetos e histórias em torno dessa relação de amor que se estabelece entre mãe e filhe, desde a gestação (em caso de maternidade biológica) até o observar a criança crescendo fora de si, é importante observar a reverberação desse texto nas mães que carregam seus filhos para todos os lugares, sendo abandonadas ao cargo exclusivo de cuidado e pressionadas pela sociedade a abdicar de sua singularidade.

Muitas e muitas narrativas oníricas, imaginárias e fantásticas são possíveis para gerar experiências sensíveis aos bebês; dando inclusive outras possibilidades de relação com as materialidades dos espaços e dos corpos. Pensando na própria pesquisa da criação de brinquedos que observam os estímulos das matérias, as relações corporais implicadas e os aprendizados disso por meio do vivenciar a coisa. Ao invés de recuperar memórias, a ação de criar memórias é um caminho para esse público.

E vivenciar, aprender, sentir não implica, necessariamente em silêncio. Talvez, tenhamos associado concentração à instauração do silêncio, no mundo adulto. Mas, isso não é um axioma. Os corpos produzem ruídos na experiência também, diálogos, expressões de riso, choro, angústia, medo, expectativa; geram sons ao mover-se, ao adaptar-se. Ainda mais quando os códigos sociais ainda não estão completamente formatados no corpo e a espontaneidade das reações imperam. O aviso que antecede ao espetáculo sobre a necessidade do silêncio para que a obra aconteça, institui uma norma em corpos tão pequenos e que ainda não tem controle de suas funções. E esse aviso recai sobre os acompanhantes que se responsabilizam ali, socialmente, pelas reações daquelas crianças. O público adentra o lugar teatral com certa tensão, receio de atrapalhar algo que parece tão frágil e sutil: a obra. Embora a obra teatral aconteça no espaço entre o público e o artista e não necessariamente, no palco sacralizado.

 

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