Dançar com o Objeto

Por Heloísa Sousa
17/10/2024

Esse texto faz parte da cobertura crítica da décima edição do Junta Festival - Dança e Contemporaneidade, realizado em Teresina (PI) entre os dias 15 e 20 de outubro de 2024. O texto é atravessado por discussões com Alana Falcão (Revista Barril, BA), que vem acompanhando o festival como crítica de arte junto da autora desse texto. Para ler o texto crítico de Alana Falcão que também cita essa mesma obra, clique aqui.

 

 

PARTE 01 - Esquema Formal (a obra e a arte).

 

Uma obra artística traz problemas para a arte. Uma obra artística não instaura, apenas, um campo de caça aos significados e metáforas para que possamos discutir outros assuntos a partir dela. Uma obra artística também expõe seus próprios procedimentos. Uma obra artística coloca à prova a composição artística em si. Uma obra artística nos faz pensar, então, sobre como compomos (na arte/no mundo).

 

Um corpo + um objeto como matérias da dança. 

Algumas questões de criação:

 

Como dançar o objeto?

Como dançar com o objeto?

Na cena, o corpo torna-se objeto? Ou o objeto torna-se um corpo?

 

Assuntos do objeto:

Sua forma (silhueta).

Sua matéria (do que ele é feito?).

Seu signo (nome - metáforas).

Sua função (utilidade).

 

Os assuntos do corpo são os mesmos assuntos do objeto?

 

Piorando o problema:

Como o corpo encontra o objeto? Como o corpo se junta ao objeto?

 

Em-contra.

Estar ao lado de? Aliar-se?

Enfrentar? Colocar-se de frente? Opôr?

Friccionar? Superfície com superfície?

Entrar nos buracos abertos? Ou cavar buracos impossíveis? Violentar?

 

O que o procedimento de encontro com o objeto elabora enquanto imagem e acontecimento?

Que corpo surge, em cena, a partir desse encontro?

 

PARTE 02 - Crítica

 

Segundo dia do Junta Festival. 

Em cena, uma mulher e uma melancia. Sala branca. Luminárias no chão. 

Segundo o google, a mulher-melancia foi o nome dado à Andressa Soares em 2006, dançarina do MC Créu, inaugurando o fenômeno da mulher-fruta no funk carioca, que estabelecia essas associações a partir do formato e tamanho de seus corpos. As relações sociais, políticas e culturais com o corpo da mulher passam, frequentemente, por relações de objetificação e relações de consumo.

Em poucos minutos. Primeira imagem, a melancia está à frente, mulher e melancia como duas formas ovais. Segunda imagem, a mulher deita a cabeça na melancia, o quarto se acende. Terceira imagem, ela está grávida. 

Parece que ela engoliu uma melancia.

A partir daí o assunto da maternagem se desenha durante toda a dramaturgia da obra “Mulher Melancia”, criada e dançada por Janaína Lobo (PI). Apesar de toda elaboração material de encontro entre superfícies (superfície do corpo e superfície da fruta - pele e casca); o trabalho se instaura a partir do campo simbólico. A melancia significa outra coisa, simboliza algo - a criança gestada, carregada, impulsionada, devorada, partilhada. Em uma sequência de re-posicionamentos da melancia em relação ao corpo, a artista vai criando uma narrativa imagética que re-apresenta as situações da maternidade. 

A melancia representa um bebê, mesmo quando a melancia ainda parece ser a melancia. 

Não deixo de ver a melancia, nem deixo de ver o bebê. 

O que a arte adiciona é a imagem da mãe. 

Se a mãe, como agente social, é frequentemente apagada como sujeito no mundo para tornar-se receptáculo-cuidadora-vigilante-exaustivamente-constante de um corpo-outro, da criança, porque ela sim - a criança, é vista como o sujeito no mundo; a arte pode ser um dos espaços para tornar visível a mãe. Obras como “Mãe ou eu também não gozei” de Letícia Bassit (SP) ou “Stabat Mater” de Janaína Leite (SP), ao reencenar o próprio corpo em uma abordagem feminista (que tensiona politicamente - não moralmente - a objetificação), desenham algo semelhante ao que Janaína Lobo faz em “Mulher Melancia”. A criança - imagem central - desaparece ou é substituída por uma forma ou sonoridade (aparece por ausência) para que a visão retorne ao corpo que gesta. E nesse olhar - desejo, exaustão e culpa parece ser a tríade que emerge desse deslocamento da visão. Tendo o desejo como a questão mais negada e a exaustão/culpa como o problema mais aceito. Tanto que, uma das motivações para o estrondoso sucesso da obra de Janaína Leite tenha sido o fato dela ter tido coragem de lidar diretamente com (enfrentar) o desejo da mãe e em vórtex - com a imagem da mãe que trepa diante da mãe. 

A principal inquietação que se elabora, para mim, na apresentação de “Mulher Melancia”, é de que nessa obra, o que se coloca como visível, já foi visto. Quando digo isso, não quero reforçar a expectativa da originalidade, pois não é sobre encontrar uma forma ou imagem inédita - já que isso é, praticamente, da ordem do impossível; mas falo sobre a composição artística tornar visível algo recalcado naquele assunto ou imagem. Mesmo com a plasticidade evidente da obra, marcada pelo cubo branco onde foi apresentada, os quadros criados parecem desenhar as relações maternas com facilidade, tornando a experiência estética uma busca sequencial por associações e reconhecimentos dos quadros como disparadores de um assunto. A questão é sobre o quanto a obra mantém-se na superfície, em termos procedimentais, a fricção da pele-casca, a melancia que rola sobre o corpo e sobre o chão e o corpo que desliza sobre a melancia e sobre chão. Cortar a melancia ao meio, comer e partilhar ainda é ação de permanência na superfície da relação habitual com a fruta - coisa orgânica, comestível e aquosa. Não revela-se nem o oculto da melancia, nem do bebê e nem da mãe. E a revelação dos ocultos talvez seja uma das principais articulações que a pergunta “como podemos deslocar, friccionar e ampliar nosso olhar sobre o corpo feminino?” parece exigir, pergunta elaborada pela própria artista. Como a movimentação que o filósofo italiano Giorgio Agamben elabora a partir do contemporâneo, ao falar sobre “ver a escuridão”. E nem sempre as situações de incômodo (culpa-exaustão, peso) estão numa zona de pouca luminosidade, afinal, a normalização do sacrifício é também um discurso político atrelado ao feminino desde séculos. 

Além disso, muitas obras em dança que lidam com a relação corpo-objeto deslizam entre o duplo signo-matéria dos objetos e dos corpos em si. Entre o signo que se interpreta e a matéria que se erotiza existe um campo que nos faz transitar entre as experiências da razão e as experiências da sensação, que mesmo na simultaneidade não deixam de expor suas hierarquias. E se, muitas vezes, a dança evita o signo para violentar a matéria como na ideia de subjetos de Marcela Levi ou do encantamento da matéria de Elisabete Finger; o que acontece quando a dança enfrenta o símbolo? Em “Mulher Melancia”, não é apenas a matéria da mulher e da melancia que estão em relação, mas também as metáforas da sexualização e da maternidade elucidadas a partir da fruta; ou seja, a melancia simboliza alguma coisa, mas eis então o problema (que não aparece). A melancia segue, durante toda a dança, simbolizando sem duvidar de si; e o símbolo (assim como a matéria) precisa aparecer como um problema para a arte. Pois a zona de conformidade com o símbolo, é a zona da publicidade. O que o símbolo esconde? Seria justamente no desmoronamento (profanação) do símbolo e da matéria, enquanto procedimento de criação, que poderia ser possível criar espaço para a ampliação/fricção/deslocamento de olhar sobre o corpo feminino que a artista sugere. “Mulher Melancia” é uma obra que carrega um problema, ainda em gestação, que interessa à dança - principalmente enquanto uma arte do tempo que possui a capacidade de operar a (de)composição como um acontecimento.

Foto de Isabela Alves.

 

Foto do banner de Victor Martins.

  



 

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