Por Heloísa Sousa
24/11/2024
Esse texto faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.
Em cena, a atriz Juliana de Almeida atua a terapeuta Baju Madhava no espetáculo “Eu no Controle”, apresentado no segundo dia do Festival Recife do Teatro Nacional 2024. A abordagem cômica da obra vai nos revelando que estamos diante da palhaça Baju, mesmo que os códigos visuais comuns da figura clownesca não estejam tão evidentes. Ao invés de um nariz vermelho, a palhaça se desdobra através de um cabelo desarrumado, uma bolsa estilo carteiro e roupas soltas, leves e brancas. O estereótipo de uma “pessoa zen” é elaborado na composição do figurino para expôr uma figura que se apresenta como especialista em autocontrole; se valendo de todos os artifícios externos possíveis para comprovar sua habilidade de equilíbrio, a palhaça Baju mostra seus conhecimentos sobre os chakras, yoga, alimentação detox, mantras, incensos e respirações que trariam equilíbrio para a vida de qualquer pessoa. A sátira tenta se estabelecer quando a palhaça se revela não-tão-equilibrada-assim ou quando os artifícios apresentados para alcançar esse estado espiritual são expostos com exagero ou alguma desarticulação material. Entre risadas e falas simples, a palhaça Baju vai interagindo com o público e proporcionando uma comicidade fácil.
O inquietante desse espetáculo da palhaça Baju é sua frágil teatralidade, sua comicidade exageradamente discursiva e sem criticidade, assim como sua presença na programação de um festival de teatro.
A arte da palhaçaria tem uma historicidade quase tão antiga quanto a do próprio teatro, com a elaboração da comicidade como uma sátira da realidade social, assim como a criação de figuras mais distanciadas da burguesia insistentemente representada ou ainda como uma prática corporal que busca evidenciar aspectos dramatúrgicos a partir de uma gestualidade rebuscada, exagerada e que torna evidente as contradições do humano a partir da materialidade da aparência e do corpo. Na tradição da palhaçaria, ações comuns a qualquer ser humano parecem se tornar trabalhos excessivamente complexos e laboriosos à figura clownesca, ao mesmo tempo em que sua habilidade e virtuosidade circense o permite realizar peripécias impressionantes aos olhos do público comum. Na figura da Palhaça Baju, o que vemos é uma atuação totalmente apoiada no discurso e na enunciação de frases cômicas; sua gestualidade quase se resume aos apontamentos e apresentações de objetos; e mesmo por essa ótica, a ausência de criticidade da obra promove uma dramaturgia excessivamente simples na sua comicidade, que se efetiva muito mais pela disponibilidade corporal do público em se divertir do que pelo alcance do riso pela obra. Como é notável nas repetidas vezes em que a palhaça Baju se autodenomina uma “pessoa controlada”, mas finda por se descontrolar quando alguma falha técnica se apresenta.
A obra até possui um terreno discursivo interessante quando se apoia no que seria um tipo de mercado do equilíbrio. Numa realidade dominada pelo sistema econômico capitalista que se baseia na exploração e exaustão dos indivíduos, capturando seus afetos, suas relações sociais e possibilidades de fruição do ócio, da contemplação e dos estados “improdutivos” da serenidade; esse mesmo sistema, decide por vender esse estado emocional que poderia ser facilmente alcançado com a diminuição da carga excessiva de trabalho e das explorações. Ainda mais neste exato momento de debate público e nacional em torno da escala de trabalho 6x1, a atriz Juliana de Almeida tem em mãos não apenas um artifício de sátira simples, mas também um assunto político que verticaliza trabalho, economia e ócio. Entretanto, a abordagem da encenação finda apenas por rir da ineficácia dos objetos e artifícios apresentados para alcançar o almejado autocontrole.
A aposta em um viés discursivo, também fragiliza a teatralidade da encenação quando observamos a disposição dos elementos de cena, a manutenção do corpo da atriz no centro do palco e de frente ao público sempre enunciando algo. Tudo em cena é falado ou apontado de modo que a relação com o público se estabelece por uma linha comunicativa e oral, muito semelhante aos recursos abordados pelo stand up comedy, que se utiliza de poucos elementos e do diálogo direto com o público para construir o riso. Entretanto, nesse caso, a palhaça Baju se apresenta em um teatro, com um amplo palco que faz sua encenação perder-se em tamanha espacialidade não aproveitada; reduzindo o caráter teatral à pura presença no palco de uma arquitetura construída para esses fins. Não me parece à toa que o espetáculo que antecedeu esse na programação, “Cara do Pai” de Tatto Medinni, apresente as mesmas fragilidades no que concerne à elaboração teatral e isso parece apontar algo em torno da curadoria do Festival.
A partir disso, essas duas obras citadas me fizeram pensar sobre um festival de teatro enquanto ação estético-política ampla e complexa. A relevância e a mobilização de um festival de artes da cena é algo que atravessa uma cidade historicamente e afetivamente; é um momento ímpar de encontros e celebração da linguagem teatral. Mas, essa celebração está longe de ser um enaltecimento aleatório da prática teatral, ao invés disso, um festival pode sublinhar e celebrar a experimentação e refundamento dessa linguagem, um momento público e coletivo para viver e repensar o teatro em si, seus alcances estéticos, seus limites formais, suas fronteiras do acontecimento. Nesse sentido, a presença da peça “Eu no Controle” nessa programação parece oferecer ao público uma obra fácil que reitera estratégias cênicas simples e desgastadas, reiterando uma forma teatral e/ou circense convencional; mas de um viés de convenção sem a devida força histórica dos modos de palhaçaria tradicionais. Ou seja, nem se propõe vanguardista e nem se apoia nas estruturas clássicas que já atestaram suas potencialidades de interação com o público. Pode-se dizer que optar por esse modo mais “simples” é uma forma mais eficiente de encontrar o público; entretanto, vale salientar o quanto um artista não deve subestimar o seu próprio público e nem precisa atender as demandas publicitárias oferecidas à arte como sendo uma experiência de “conforto” que nos faz reencontrar com o já conhecido e apenas destacar aquilo que já está posto a visão. A arte pode muito mais.
Foto de Mari Frazão.